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Albergue dos danados

Blog de maus e mal-dizer 

2004-10-31


Empatar a inveja. O Filipe foi ver a Leonor na noite do dia vinte e um, ele foi ver a Jennifer na noite de ontem. A inveja, agora, está ex equo. Segismundo.

Referência

2004-10-30


Pormenores que incomodam, ii. Ela entrou no quarto dele. Decidiu colocar um cobertor felpudo sob o edredon. Nada disto fez sentido. Ele, com menos de um hora de sono, reclamou, disse que não tinha frio. Ela reagiu dizendo que tinha caído neve lá fora. Ele acabou por anuir à colocação do cobertor. Depois de ela ter saído do quarto, livrou-se daquele peso morto aquecedor. As mães são assim. Olham para os filhos como se eles nunca fossem crescidos. Segismundo.

Referência



Pormenores que incomodam, i. A casa é dele. O quarto é dele. Mas quase sempre que regressa, de madrugada, depois do exílio pendular da semana, o candeeiro não acende. Algum dia alguém vai engolir a ficha do aspirador. Para não se esquecer da ficha do candeeiro. Segismundo.

Referência



Modo manso de ser sádico. Se podes sofrer comigo, por que é que hás-de sofrer com outro? O Marquês.

Referência

2004-10-29


Editorial. Este tugúrio pode encerrar a qualquer momento e sem aviso prévio. Acontecerá, se lá fora a vida deixar de ser um carrocel, merry-go-round. Aceitam-se reclamações. Que poderão ser ou não atendidas. Depende do carrocel. E, antes de qualquer demónio, da puta da vida. A gerência.

Referência



Liber. O que é isso de ser liberal old fashion?, perguntou ela. É sofrer a liberdade de ser e querer ser livre, respondeu ele. Isso quer dizer que vais jantar comigo?, insinuou-se ela. Não, disse ele, os jantares são perigosos, podem fazer assomar em alguém a sensação de engano. Segismundo.

Referência



Agenda. Teatro da Comuna, Edward Albee, The Goat or Who is Sylvia?. Ir ver urgentemente. Não esperar. Segismundo.

Referência



O mundo ao contrário. Dia dez de Novembro, Lux, Anthony (sem, consta, & the Johnsons) a fazer a primeira parte de Coco Rosie. Segismundo.

Referência



Unchained melody. Há canções que são mentira. Mas o que releva é que são canções. Não que são mentira. Segismundo.

Referência



Para além do fim. O engano não é para além do fim. Isso ou é dor. Ou é ciúme. Uma forma de dor possessiva. Não de engano. Segismundo.

Referência



Fim. Achas que o fim nos persegue?, perguntou ele. Não, o fim não nos persegue, o fim precede-nos, acontece e, depois, fica para trás, disse ela. Por que perguntas?, quis ela saber, então. Porque sinto que um fim me persegue para além de si-mesmo, disse ele. Já percebi, mas isso não é o fim a perseguir-te, é o fim a não acontecer, a não acabar. Há-de acabar, sossega, confortou-o ela. Segismundo.

Referência



A morte da personagem principal. Ela, e o romance? – qual é o título?, O Único dos Amores de um Homem, não é? –, quando é que o acabas?, gostava de o ler. Ele, está quase, atalhei prosa. Ela, atalhaste prosa? Ele, sim, tive que matar o protagonista. Ela, tiveste que matar o protagonista?, porquê? Ele, por causa da profissão dele. Ela, essa não compreendi. Ele, agora também não posso explicar-te. Segismundo.

Referência



Volta e ida. Ela, olá, voltaste? Ele, voltei. Ela, e vens de onde? Ele, venho de Land of Plenty, do Wim Wenders. Ela, e ficas até quando? Ele, até amanhã. Ela, e depois? Ele, depois vou. Ela, pegando-lhe na mão, então, anda, deixando cair no chão um livro de Sextus Empiricus. E ele, sem palavras, foi. Segismundo.

Referência



Caderno de emprego d'la peau trouée. Se fumas Malboro e não enjoas no mar, podes ser um autêntico matador de tubarões. Segismundo.

Referência



Espectáculo. Colher mandrágoras sob o próprio cadafalso e mastigá-las. Algo acontecerá quando a corda esticar. O Marquês.

Referência

2004-10-28


Procura-se, vivo ou morto. Não tem sido visto o senhor primeiro-ministro. Acaso dormisse a sesta, era motivo para sossego. Como o fulano parece que anda acordado, bom augúrio é que não é. Nicky Florentino.

Referência



Agenda. Depois do trabalho, ele irá correr para ver Undertage e La Peau Trouée. A solidão devia ser assim, correr para um écran. Segismundo.

Referência



Na casa de trabalho. Ele olhou o chão. Viu um chinelo com um pé de mulher em meia de rede. Pensou, este lugar é uma casa de loucas. E seguiu, lesto, para o gabinete, para trabalhar e proteger-se da fauna que circulava nos corredores daquele lugar. Segismundo.

Referência



Acompanhar a madrugada do céu. A lua veio (mostrar-se), a lua foi (escondida), a lua voltou a vir (mostrar-se). Segismundo.

Referência



PolíciadeSegurançaPública. Final da Pinheiro Chagas, duas horas, madrugada. Pararam, não estacionaram, o carro, imediatamente antes do semáforo. Saíram. Dirigiram-se a uma montra. Apreciaram as peças expostas. Camel Active. Discutiram preços e estética. Tornaram ao carro. Antes de entrarem, compuseram a farda. Entraram. E foi desligado o rotativo azul que havia sido accionado aquando da paragem do carro. Depois arrancaram. A patrulha, como a noite, continuava. Segismundo.

Referência



Fitas. “A vida é estupidez e descontração natural”, disse a personagem. No remate do filme, Noite Escura, morreu. A esposa, conforme anunciado e prometido, pum!, matou-o. A puta da vida é assim. Segismundo.

Referência



Hesitações que não acontecem. Escolher entre Landscape, a partilha de uma sobremesa e o veneno. Por vezes o que é prioritário atrasa-se e não se percebe esse atraso. Mau sinal. Segismundo.

Referência



Em quase o fim do mundo. Pato com molho de vinho tinto. E olhares. E palavras. Tudo escondido. N'A Maria. Segismundo.

Referência



Bestas no asfalto. No muro, junto ao portão de entrada de uma herdade, havia uma placa que tinha inscrito CUIDADO! Gado Bravo. Adiante, raras centenas de metros, quatro exemplares da fauna. Um comodamente deitado no alcatrão, indiferente ao trânsito. Os outros três a cirandar pela estrada, como se estivessem a pastar, embora o verdejante pasto estivesse para lá da cerca derrubada. Mais bestas, depois, se precipitaram para a estrada. Todas com modo suspeito, macilento. Segismundo.

Referência



Extreme. Deporto radical é dominar um alazão de ferro a evoluir a uma velocidade, média, por hora, de duzentos quilómetros e utilizar o shortmessageservice. Sem rede. Segismundo.

Referência



. (em espera, provavelmente eterna) O Marquês.

Referência

2004-10-27


Charco sem nenúfares. Escreveu o Daniel, “à nossa democracia ainda falta crescer muito”. Equívoco moral. No contexto da hodiernidade, a democracia não tende a melhorar, quanto mais melhorar muito. A democracia tende a piorar e a degenerar. Nicky Florentino.

Referência



Uma questão de honra. O senhor Prof. Doutor Marcelo Rebelo foi prestar declarações à AltaAutoridadeparaaComunicaçãoSocial com o propósito de defender a respectiva honra. Entretanto, por ser pragmático e económico juntar o útil ao agradável, arrasou a honra do senhor eng.º Paes do Amaral. Não há inocentes. E não é por acaso que a vichychoisse é uma sopa fria. Serve para qualquer vingança. Nicky Florentino.

Referência



Olhar a abóbada nocturna. Disse o José. Nicky Florentino.

Referência



Durex. Ser Durão não é ser duro. Os duros não rogam espera. Sabem que a espera amacia, amansa. E não apenas os outros. Nicky Florentino.

Referência



Clube dos poetas. A doutrina do senhor dr. Paulo Portas tange a sapiência. Disse ele a uma assembleia de sessenta jovens, professos da causa do CDS/PP, “vocês são todos neoconservadores. Vocês são neo porque são jovens e conservadores porque acreditam no valor inerente à defesa das instituições”. O oxímoro é bonito. Faz rememorar aqueloutro, o das cabalas que são independentes das intenções. Aos do Governo, deu-lhes agora para a poesia. É não respeitar essa instituição. Nicky Florentino.

Referência



Ver torto e a direito. Palavras do senhor dr. Paulo Portas, “a oposição, que medra na desgraça, está agora confrontada com um país com melhor alma”. A estupidez não devia proporcionar dissonâncias cognitivas de tal calibre. Pois há um mínimo de salubridade do juízo que deve ser preservada por qualquer criatura. Nicky Florentino.

Referência



Democracia axiológica. A propósito do próximo congresso do PSD, disse o senhor presidente da distrital de Braga da referida confraria, “a eleição directa é boa para a democracia, mas não é a melhor para a fidelidade aos valores”. Ora aí está um motivo plausível contra a realização de eleição de qualquer tipo. Pois se a democracia alguma virtude há-de permitir é a de ser uma democracia axiológica. Com corantes e conservantes e sem borbulhas. Nicky Florentino.

Referência



Captações, x. Em Les Chants de Maldoror. “Logo que o cliente saía, vinha cá para fora, da mesma maneira, uma mulher inteiramente nua, e dirigia-se para a mesma selha. Então os galos e as galinhas, atraídos pelo odor seminal, acorriam em multidão dos diversos pontos do pátio, atiravam-na ao chão, apesar dos seus vigorosos esforços, patinhando sobre a superfície do seu corpo como uma estrumeira e retalhando às bicadas, até sair sangue, os lábios flácidos da sua vagina inchada. As galinhas e os galos, de papo saciado, voltavam a escavar na erva do pátio; a mulher, agora limpa, levantava-se a tremer, coberta de feridas, como quando acordamos de um pesadelo. Deixava cair o trapo que tinha trazido para enxugar as pernas; não precisando já da selha comum, voltava para o seu covil, como tinha saído, para esperar por outro freguês”. Segismundo.

Referência



Radar. Exercício de captação. O Alexandre disse. O Ivan disse. Não é necessário variar sobre o já dito. Porque está sobejamente dito. Como dito. Segismundo.

Referência



Fugir da depressão que se aproxima. Está anunciado temporal, a metereologia aconselhada para viajar até quase o fim do mundo. Segismundo.

Referência



Sobrevivência. A fome não acontece. O sono é nenhum. E o bálsamo da chuva é a devolução da suficiência de si. Segismundo.

Referência



Desgraçado. Durante o jantar, em que se riram de si-mesmos, os quatro conviveram com a própria miséria. Um outro chegou depois, de todos provavelmente o mais desgraçado, e não foi capaz de rir-se de si, tão pouco suportou que os outros se rissem dele. Ressentido, decidiu ausentar-se do jantar, antes da sobremesa, como modo de os fazer sofrer. Mas eles ainda se riram mais. Porque lhes apetecia rir. E também porque lhes apetecia magoar, com os risos histriónicos, o outro, de todos provavelmente o mais desgraçado. O Marquês.

Referência

2004-10-26


O voto como engano. Escreveu o João, “é uma má ideia usar o voto para punir a performance passada. Os eleitores devem decidir com base em conjecturas acerca da performance futura de cada candidato. O passado já passou”. O discurso é meio atinado. E por ele se vê a ilusão do que é o voto. O desgraçado do eleitor só experimenta a minúscula parcela de soberania no juízo que faz sobre o passado, se esse passado no presente se insinuar para o futuro. O que o voto faz, consegue fazer, é estancar o passado. Mas o voto, de facto, vale para o futuro, o escrutínio vale para o porvir. É por isso que frequentemente a democracia acontece logro e lodo. E ainda bem. Na próxima oportunidade eleitoral os gentios têm a possibilidade de confirmar ou não o conforto que decorre desse logro e desse lodo. O raio em tudo isto é a mania, a tentação de confirmar o que vem do passado. Que, de facto, já passou. E se percebe que nunca devia ter passado. Talvez ainda não seja tarde. Mas quase sempre é já tarde demais. Pelo menos para a paciência. Nicky Florentino.

Referência



Pergunta e resposta. Perguntaram ao senhor presidente da distrital do Porto do PSD, “não receia que o congresso fique marcado por unanimismos falsos?”. Primeira frase da resposta, “não podemos criar artificialmente conflitos em função de comentadores ou críticos”. O cú e as calças, parece, encontram-se neste raciocínio. Não é bom augúrio. Sobretudo por motivos higiénicos. Nicky Florentino.

Referência



Pressões. Disse o senhor dr. Paes do Amaral, o senhor presidente do ajuntamento Media Capital, que considera que num qualquer momento, a única vez que lhe aconteceu, foi pressionado pelo senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva. Compreende-se, o outro era de pau. E ele, pela experiência que revela ter em ser pressionado, é apenas barómetro de uma só vez. É pouco para se ser tão assertivo sobre o fenómeno. Mas, enfim, é o que é. E vem de onde vem. De um despressurizado. Quiça se na cabeça também. Não sei. Não quero saber. Nicky Florentino.

Referência



Morrer também com os outros, in another sessions. Lágrimas da Reuters. Morreu John Peel. Segismundo.

Referência



Natureza. Corpo que não reclama sono é corpo vivo, urgentemente vivo, mas há-de cair. Como os frutos maduros. Segismundo.

Referência



The boy with the thorn in his side. Nem cruz, nem espinho. Apenas vida, apenas veneno. Pois o excesso, essa necessidade vital, confere nitidez ao mundo e empresta soberania sobre as coisas. As que aconteceram. As que acontecem. E as outras. Segismundo.

Referência



Pensamento. Ele a pensar, um dia mato-te para que possamos, todos, talvez todos, sobreviver e celebrar a vida. Como é ingénuo, ele, o degraçado. Segismundo.

Referência



Anima miseranda. Por vezes o discernimento evita-o e ele admite a hipótese de deus. Loucura, deus, essa ordinária e vetusta ficção, existir para além do seu estado narrativo. Mas o discernimento nunca o evita assim tanto ou demoradamente. E isso é quanto basta para se reencontrar consigo, a única das coordenadas antes do mundo, e dispensar a hipótese enganadora. Não vale a pena esperar deus. Ele não aparece. Apareceria, se existisse. Não existe. E não faz falta. Excepto para se inventarem e contarem estórias sobre ele. Entreter. Segismundo.

Referência



Impressões. A ele impressiona-o a capacidade de os corpos se derramarem em sangue, suor, lágrimas, saliva, urina, fluídos seminais e, quando líquida, também em loucura. Segismundo.

Referência



Sangrar. Se o seu princípio é doença e não dor, há sangue cuja origem não interessa, nem muito, nem pouco, saber. O Marquês.

Referência



Editorial. Siga a estúrdia! A gerência.

Referência

2004-10-25


Palavras que não serão repetidas. Não sei se alguma vez consegui ser justo e enunciar o tamanho da tua falta em mim. Sossega-me apenas uma suspeita, irá falir e diluir-se o sentimento dessa falta e, por consequência, irá extinguir-se a necessidade dessa justiça. Um beijo para ti. Boa noite. Escreveu ele. Segismundo.

Referência



Obituário. Porque o amor é lindo, há que matá-lo. Já está. Segismundo.

Referência



Segurado. Após uma sondagem ao mercado, ele percebeu que não há seguros que protejam da loucura. O que é mau sinal. Apenas um louco admite que um seguro o acautela de si-mesmo. Segismundo.

Referência



O que acorda permanentemente o corpo. Nada acontece, excepto o mesmo grito a clamar por ti, ao ritmo sincopado da pulsação, é o que ele sente e não diz. Segismundo.

Referência



Equilíbrio fingido. Ele em retrato, quando não chove. Cheio de nada. A lâmina não corta. A vida não tem o sabor de passatempo. A ferida. Nada desaba no interior. A ausência sente-se presente. Uma forma de vazio, vazio inteiro. A perda? Um pronome, tu, que a voz simultaneamente evita e convoca. O silêncio que os olhos já não suportam. A nudez entre os lençóis impregnados de solidão. Não o desespero. Apenas a perturbação. O sono falido. A fome também. Um desejo crescido, maior ainda, que não pode ser dito. O sangue incendiado, demasiado incendiado. E onde é que ela está? não é uma dúvida, é uma certeza. Segismundo.

Referência



Captações, ix. Em Les Chants de Maldoror. “Eu lamentei o insensato que tinha cometido esta malvadez que o legislador não previra e que não tivera nunca precedentes. Lamentei-o porque é provável que não estivesse no uso da razão quando empunhava o punhal de lâmina quatro vezes tripla, dilacerando de alto a baixo as paredes das vísceras. Lamentei-o porque, no caso de não ser louco, o seu comportamento vergonhoso devia acalentar um ódio bem grande contra os seus semelhantes, para assim se obstinar sobre as carnes e artérias de uma inofensiva criança, que foi minha filha. Assisti ao enterro daqueles destroços humanos com muda resignação; e venho todos os dias rezar sobre um túmulo”. Segismundo.

Referência



Re: I'm waiting for the man. Respondo-te para não te responder. Se nada dissesse, poderias interpretar esse facto como produto de indiferença. Não, não é indiferença. É apenas a necessidade de estar longe, a ouvir Love will tear us apart. Um beijo para ti. Dorme. Escreveu ele. Segismundo.

Referência



I'm waiting for the man. Estou a ouvir Velvet Underground, já percebeste. Como me ensinaste, a vida é um longo enredo de canções e devemos deixar que elas digam o que queremos dizer. Sei que fugiste. Eu espero por ti. Custa a espera, mas espero, espero por ti. Sou livre e é em liberdade que espero. Sei que não esperarei eternamente por ti, mas agora espero. A força do que sinto consente a espera. Não fujo do que sinto. Sei o que sinto. Sofro-o. Assombra-me. Perturba-me. Mas não fujo desse sentimento. Atordoa esse sentimento. Rasga. Dilacera. Mas é por ele, pelo seu crédito em mim, que espero por ti. Não morro. Sofro apenas. Quero-te. Mas não o digo. Não posso, não devo dizer-te. Desejo que sejas livre de me querer. Não quero que me queiras por culpa ou compaixão. Quero que me desejes como eu te desejo. Não sei se vai acontecer. Desejo que aconteça. Mas, reitero, não sei se vai acontecer. Se me quiseres, diz-me. Espero. Arde-me a espera. Mas eu espero. Até quando os sonhos não me doerem. Como o Lou Reed canta, I'm waiting for my man. Boa noite. Escreveu-lhe ela. Segismundo.

Referência



Non. Troa o silêncio. Os demónios estão em festa. E alma dele é onde se banqueteiam, em modo orgíaco. Segismundo.

Referência



Quando deus não existe. Ele vagueou pela avenida, como costume, pelo meio, além, devagar, perseguido pelo olhar dos agentes da PêÉssePê. Não chovia. E, por esse facto, pôs-se ele a pensar quão dispensáveis são, para si, as mais provas relativas à inexistência de deus. Se deus existisse, deus mandaria chuva ao seu encontro, não lágrimas. Segismundo.

Referência



Paisagens. Da janela do quarto dele vê-se o castelo. E a solidão aberta em si. Segismundo.

Referência



O eco que vem de dentro. Para além da verdade, o que é que te impede de cantar she loves me, ié, ié, ié?, perguntava-lhe a tortuosa consciência, antes de ele começar a auto-flagelar-se. O Marquês.

Referência

2004-10-24


Contra. Se a natureza do BE é exacta, há anúncios dispensáveis. Já se sabia que o BE votará contra a proposta do Orçamento do Estado para o ano de doismilecinco. Não era necessário dizer. Nicky Florentino.

Referência



Fatalidade. Informou o senhor dr. Jorge Ferreira que, ontem, o conselho nacional do PND, porque dividido, decidiu nada decidir sobre o município, se Lisboa, se Porto, onde o senhor dr. Manuel Monteiro será candidato à respectiva Câmara Municipal. Caso persista essa entorpecedora divisão, há uma solução óbvia para o impasse. Moeda ao ar. Algum dos municípios tem que ficar a perder com o tal candidato. Fatal como o destino. Que seja, pois, o azar a ditar qual. Nicky Florentino.

Referência



Corridas. Disse o senhor Miguel Relvas que o senhor primeiro-ministro tem sido uma espécie de “campeão da maratona”. Como se isso fosse relevante. Não, não é. Governar não é ser-se carapau de corrida. Nicky Florentino.

Referência



Coisas que um homem faz. Quando se suspende a faculdade de fingimento, o que um homem faz para iludir a falta, sentida, sentida cratera, de uma pequena, pequena coisa. Uma pequena coisa como se fosse tudo. Segismundo.

Referência



Controlo remoto. O juízo escapa. Como consequência, falha a coordenação. Os gestos estendem-se, tornam-se largos. A voz cresce. Experimentam-se limites. Fazem-se e dizem-se coisas que valem apenas no instante, naquele instante. Mas há um limiar de humanidade que não se ultrapassa. Percebe-se isso quando alguém se recusa a ir ao outlet de Alcochete ver os Pet Shop Boys. A amizade pode ser funda. A loucura não. Segismundo.

Referência



The end. O Segismundo não é ele. É outro. Impossível. Segismundo.

Referência



Erro. O Blogger é uma merda. Não é necessário repetir. Segismundo.

Referência



Inveja dele. Porque morrer não é, nunca foi, outra das opções. E porque, ele sabe, os trigres também páram nos semáforos. Segismundo.

Referência



Vera cidade. Nada disto é verdade. É o que ele lhe vai dizer. Segismundo.

Referência



Lágrimas. Chove. Muito. É como se fossem lágrimas dele. O triste. A trepidar. O triste. Segismundo.

Referência



Self. A consciência chega como um coice. Segismundo.

Referência



Manias. Sobreviver é uma mania. Ninguém sabe morrer. Segismundo.

Referência



Bilhete. A tabuleta tinha escrito lasciate ogne speranza, voi ch’intrate. Ele leu-a. Depois entrou. E seguiu para o fundo. De si mesmo. Segismundo.

Referência



Maternidade. Não há mães, que tenham a roupa estendida lá fora, que compreendam a alegria da chuva. Segismundo.

Referência



Dormir no chão. Não há pulgas no quarto. Devia haver. Sempre era uma distração. Segismundo.

Referência



Intimidade. Demónios. Demasiado íntimos. Não é possível a alguém descartar-se da sua identidade. É esse o domicílio do princípio da dor. Não te preocupes. O princípio... O resto, as sobras, a chuva não lava. Concentra. Segismundo.

Referência



Experiência. Partir relógios não faz, não fez parar o tempo. Segismundo.

Referência



Experiência. Partir relógios não faz, não fez parar o tempo. Segismundo.

Referência



Experiência. Partir relógios não faz, não fez parar o tempo. Segismundo.

Referência



Filmes. A vida não é como nos filmes do Kusturica. Sabe-se. Não se devia esquecer. Nunca se devia esquecer. Segismundo.

Referência



Fra(n)queza. És fraco. Sim, és fraco. És como és. Infecto. Intacto. Vivo. Shame on you. Segismundo.

Referência



Apontamento. Não morrer. A dor tonifica. A chuva engana. O black label também. O telemóvel é resistente. Os copos não. O mundo começa aqui ao lado - como se isso fosse coordenada relevante. A pergunta é, sabes onde estás? Não. Também não interessa. Nem a pergunta. Nem a resposta. Segismundo.

Referência



Dores. Dói. Não devia doer. A anestesia falhou. Ele também. Segismundo.

Referência

2004-10-23


O que é expectável de um homem ao volante. Quando transita por esse corredor não-lugar que é a Áum, o Pedro devia ouvir as peças para coro e orquestra sinfónica de Giacinto Scelfi. Pois duas características há que são inadmissíveis a um homem ao volante, o desgosto – ou, o que é o mesmo, a incompetência estética – e a mansidão. Aliás, na vida e nos trânsitos a que ela obriga, chegar ao destino é um mero pormenor. Relevantes, sim, são as companhias que se juntam e a música que se ouve durante as viagens. Segismundo.

Referência



No Quarteto. Cena um. Numa mesa, a paixão servida. O olhar deslumbrado e concentrado dela. A voz moderada dele. Ela com a cabeça inclinada, suportada pela palma da mão direita e o cotovelo apoiado no tampo da mesa. Ele moderado nos gestos e na explicação. Ela e ele não se tocavam, excepto com o olhar, as palavras e os sorrisos cúmplices da paixão ainda não anunciada mas evidente. Cena dois. Noutra mesa, a discussão em torno de um Pedro. Uma diz que uma noite o expulsou do seu quarto. A outra queixa-se do galanteio continuado, das insinuações dele. As duas desdenham-no. Mas, ao mesmo tempo, mesmo não parecendo, disputam-no. Ganha aquela que conseguir enganar a outra. Mas nenhuma delas se deixa enganar. Fingem as duas, percebe-se. Ambas desejam-no. Talvez não por cada uma delas o desejar. Mas por cada uma saber que ele, o tal Pedro, era desejado pela outra. Segismundo.

Referência



Preencher o futuro. Do que recordo, há uma pergunta que nunca te fiz, queres viver comigo?, mas irei fazer, guardou ele, para si, o segredo de tal decidida vontade. Segismundo.

Referência



Sintonias. Ela, quero que me fales do Macunaíma, não que me fales do marsupilami, percebes? Ele, então vamos falar sobre a Estrela de Clarice Lispector, está bem? Ela, não, não está bem. Ele, está bem, percebi. Segismundo.

Referência



Jeito de impressionar. O que estás a ler?, demonstrou ele a sua curiosidade pelo pequeno livro que ela segurava aberto. Ela, sem desviar os olhos do livro, com uma evidente acentuação eslava, respondeu Zapísski Sumaschédchego. Ele ficou atónito, como ela estimara. Levantou-se, chegou-se a ele, tomou-lhe o caderno por alguns instantes e caligrafou, na página em que ele estava a escrever, uma série de caracteres cirílicos, Записки сумасшедшего, indecifráveis para ele. Zapísski Sumaschédchego, isto lê-se Zapísski Sumaschédchego, disse-lhe ela, ao mesmo tempo que o seu indicador corria a linha dos caracteres que havia desenhado. Ou seja?, perguntou ele. Diário de um Louco, é do Gogol, Гоголь, esclareceu-o ela. Segismundo.

Referência



O suplicante. Por que é que te faço sofrer?, porque não sinto a culpa. Sinto, sim, o prazer da culpa de te fazer sofrer. Sinto esse prazer porque te sei sofredor e sofrido às minhas mãos. Sinto esse prazer porque suplicas. É isso que me tonifica reforçadamente o gozo. O Marquês.

Referência

2004-10-22


Azulibranco. O Rui é danado. Mesmo quando não tem piada. Nicky Florentino.

Referência



A queda fiel. Os velhos caem. Como quando eram meninos. Não, não é a inocência. É a idade, o corpo a falhar. Como quando eram meninos. Segismundo.

Referência



Re: Ei, tu aí?. Coincidência. Eu estou a ouvir I thought you were my boyfriend. Escreveu-lhe ela. Segismundo.

Referência



Re: Ei, tu aí?. Fui ao Quarteto, ver O Homem que Copiava. Depois fui para casa, não a tua, ouvir I don’t really love you anymore. Desculpa, mas hoje não estou para ninguém, sequer para mim mesmo. Dorme bem. Um beijo para ti. Escreveu ele. Segismundo.

Referência



Ei, tu aí?. Nada sei de ti. Onde andas? Sinto a tua falta, sinto vontade das tuas mãos. Hoje li Hart Crane. Li também Artaud. À tarde estive no jardim da Gulbenkian. Mas não te vi. Onde andas? Fugiste? Voltas? Tenho frio. E não estou capaz de olhar o rio. Torna. A porta do quarto fica aberta. É um sinal para ti. Quero-te. Boa noite. Escreveu-lhe ela. Segismundo.

Referência



O louco do fim da rua, outra vez. O senhor António encontrou-o. Tornou à ladainha costumeira. Que anda a ser telecomandado pelo mágico do exército que o drogou com um copo de vinho. Que o botão no estômago – carrega no umbigo para se fazer entender – o faz ouvir vozes, que estão permanentemente a ressoar-lhe na cabeça. Que deus o há-de salvar. Que ele tem que fazer alguma coisa para auxiliar deus a salvá-lo. O que é que o senhor me aconselha?, perguntou a ele o senhor António. Liminarmente afastadas as hipóteses de lhe recomendar a dedicação a rezas ou o suicídio, ele respondeu-lhe o melhor é ir dormir a sesta. O senhor António, divinamente ilustrado, sorriu em jeito maroto e não foi dormir a sesta. Continuou apenas a tagarelar. Segismundo.

Referência



O batismo. Baixou-lhe a água sobre a cabeça e enunciou as seguintes palavras lasciate ogne speranza, voi ch’intrate. O Marquês.

Referência

2004-10-21


O mundo simples, dividido ao meio. Em artigo estampado na edição de hoje do Público, sustenta o José que a distinção entre esquerda e direita é uma distinção holística ou pretenciosamente holística, total. Talvez seja. O que faz o caso para perguntar se emprestar a voz à Bancada Central é ser canhoto? ou destro? E se o Futebol Clube do Porto, quando perde dois-zero com o Paris Saint Germain, é mais de esquerda ou de direita. Como não se sabe, são estas algumas das dúvidas que assombram. Nicky Florentino.

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O prémio. O senhor António Lopes Macedo, senhor presidente do conselho de fundadores da Comunidade Vida e Paz – o nome assusta –, regozijou-se por tal entidade, atenciosa com “párias da sociedade”, ter sido laureada com o prémio Gulbenkian-Público Acção Solidária em Desenvolvimento Humano e Social. Sorte a dos desgraçados. Podiam não ter mesmo qualquer utilidade. Assim, pelo menos, os underclass sempre valem um prémio a quem, os wonderclass, deles se ocupam. Nicky Florentino.

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Inquietude. O senhor primeiro-ministro propôs que os professores, pois são muitos os desocupados – o que é o raio de uma complicação para o Governo –, fossem assessorar os juízes. A ideia só não é boa porque trambelho revela nenhum. O fulano deve julgar que governar é como os putos estouvados a encaixar peças de puzzle. Quando os contornos não permitem o encaixe desejado, convoca-se o auxílio da tesoura e da lima. Alguma coisa tem que ser feita. Nicky Florentino.

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Caminhos. Não vás a Madrid por causa do carro. Não vás a Madrid por causa da chuva. Não vás a Madrid por que a tua vontade é outra. Mas não fiques em Lisboa por causa de uma mulher. É um conselho. Mau. Mas é o conselho que te posso dar. O Marquês.

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Captações, viii. Em Voyage au Bout de la Nuit. “A reflectir em tudo isto, não havia meio de terminar o seu licor. Em todo o lado se levantava poeira. À volta dos plátanos vadiavam miúdos lambuzados e pançudos, que o disco também atraía. No fundo, ninguém resiste à música. Tão pouca utilidade o coração tem, que o entregamos de bom grado. No fundo de todas as músicas há que ouvir a ária sem notas feita para nós, a ária da Morte”. Segismundo.

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Decidir o destino. Ele vacila. Ir ou não ir a Madrid? Tem dentro de si, paralelo à tranquilidade, um assombro. Um desejo também. E um enunciado verdadeiro, por ti dava a minha vida. Este é o limite dele. Do seu futuro, esse, quase nada se sabe. O que se sabe é apenas que acontecerá. Ir ou não ir a Madrid? A resposta virá ao acordar. Mas sem o conforto de saber que deus, na sua função de croupier, já lançou os dados e a resposta está dada. Segismundo.

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Para ti. Quero dizer-te, segredo, o que sinto, silenziu d’amuri ca camini intr’a li vini, silêncio de amor que caminha dentro das veias. Um beijo para ti. Boa noite. Escreveu ele. Mas não lhe mandou, faltou a coragem, a mensagem. Segismundo.

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Lavorare Stanca e auto-expiação. Ela, andas a escrever muito, não andas? Ele, não sei. Ela, porquê?, por que é que andas a escrever tanto? Ele, provavelmente para exorcizar os meus demónios, não sei. Ela, mas tu também sofres de demónios? Ele, claro, como todos, e tu és um deles, um dos meus demónios. Ela, não sabia. Ele, nessa ignorância estamos juntos, eu também não sabia. Segismundo.

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Memória de uma noite na Aula Magna. Foi anunciado um concerto. Aconteceu um recital. Não o fulgor. Segismundo.

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2004-10-20


Ontem, hoje e amanhã. O senhor dr. Morais Sarmento foi à Assembleia da República explicar-se. Bonita e louvável a acção do fulano. Porém, mais aconselhado era que se tivesse remetido ao silêncio. Pois ninguém se deve dispor a tamanha fra(n)queza, confessar, mesmo que apenas implicitamente, que não sabe o que diz. Se o que disse na véspera não foi o que disse hoje, o que é que vale amanhã o que foi dito hoje? Não interessa. Nicky Florentino.

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Captações, vii. Em Voyage au Bout de la Nuit. “De regresso ao Laugh Calvin cumprimentei o porteiro, embora ele se esquecesse de me desejar as boas-noites, como os de cá; mas já me estava nas tintas para o seu desprezo de porteiro. Uma forte vida interior basta-se a si própria e é capaz de derreter vinte anos de icebergues. É assim mesmo”. Segismundo.

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Apontamento. A agenda dele está aberta na página do dia vinte de Outubro. Tem algo escrito, o seguinte. Ir ao concerto d’The Magnetic Fields. Em caso de boleia, nada deixar no carro de quem também vai. Amanhã é dia de trabalho. E hoje não é dia de aventuras. Para além disso, não há dispersor de angústias ao alcance. Segismundo.

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Dos pequenos (des)ajustamentos vitais, ii. Ela, sabes?, às vezes penso que gostava de ter um cão cá em casa. Ele, como se desesperasse, outra... Ela, outra? Ele, sim. Ela, mas outra o quê?, explica lá isso. Ele ficou calado. Ela, outra?, outra?, outra?, em crescendo de voz e irritação. Ele continuou calado. Ela, decididamente, vou ter um cão, um labrador, decidi, está decidido. Ele, porquê?, tens medo? Ela, em tom danado, não, porque não te tenho, porque sou outra, porque esta casa é demasiado grande para ser habitada apenas por um animal. Ele, um animal?, sou eu? Ela, ainda mais danada, não, não és tu o animal desta casa, raramente cá estás, o animal desta casa sou eu. Para se redimir, ele tentou alcançá-la, abraçá-la. Mas ela, xô!, recusou-o, enxotou-o. Como se ele fosse um cão. Segismundo.

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Dos pequenos (des)ajustamentos vitais, i. O que dizes da nossa experiência?, achas que somos compatíveis?, perguntou ela. Somos parcialmente, respondeu ele. Parcialmente?, expôs ela a sua dúvida. Sim, julgo que somos parcialmente compatíveis, reiterou ele. Podes explicar isso?, isso do parcialmente, pediu ela. Acordas, como eu, a ouvir rádio – nisso somos compatíveis –, mas acordas a desoras, de madrugada, muito mais cedo do que eu – e nisso somos incompatíveis –, explicou ele. Segismundo.

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Rain on me. Gosto da chuva, não te sei explicar porquê. É como se o céu fosse um mar a desfazer-se lentamente, em farrapos de água, e nós vivêssemos sob ele, experimentando com o corpo a sua diluição. Disse-lhe ele. Segismundo.

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O prazer da mentira. Mentir era um prazer para ela. Por isso mentia-lhe, a ele. Que o amava. Que era o homem, o único, da sua vida. Que era feliz com ele. Que seria eternamente feliz com ele. Que tudo. Ele acreditou nas mentiras dela. Do mesmo modo que ela sentia prazer em mentir-lhe, ele sentia prazer em acreditar nas mentiras dela. Sofreu ele, depois, por isso. E ela, com a dor dele, satisfez-se ainda mais. O Marquês.

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2004-10-19


Cabalagain. Em audiência à Alta Autoridade para a Comunicação Social, disse o senhor dr. Rui Gomes da Silva, fulano em senhor ministro dos Assuntos Parlamentares, “as cabalas existem independentemente da vontade subjectiva de as constituir”. Acontece o mesmo às alimárias. Existem. Independentemente da vontade subjectiva de as constituir. Nicky Florentino.

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Houba! Até Agosto de doismilecinco, ir a Paris. Foi inaugurada hoje, na Cité des Sciences e de l’Industrie, a exposição especial Le Monde de Franquin. Que não é apenas o mundo dele. É também o meu. Segismundo.

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Canonização. A senhora, por evidente e comprovadamente mártir ser, a santa. Já! Segismundo.

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Quietude. Os melhores do mundo são os quietos. Por boaventura, deles será o reino dos céus, acaso exista. Ainda assim, deles, os quedos, não se deve ter inveja. Muitos são já cadáveres. E os outros são como se fossem. Segismundo.

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Faces interiores. Não deves escolher entre o tormento e a tranquilidade, disse-lhe ela. Não devo escolher porquê?, perguntou ele. Porque são os termos de uma dualidade, explicou ela. Dualidade?, qual dualidade?, quis ele saber. Tu, na tua identidade, respondeu ela. Mas isso é uma forma de me prender e condenar, reagiu ele. Não, não é, é, antes, uma forma de te salvar, disse ela. De me salvar de quê?, de quem?, interrogou-a ele. De ti, sentenciou ela o diálogo. Segismundo.

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Execício de imaginação. Ela, o que é que me imaginas? Ele, uma mulher. Ela, mas isso é óbvio. Ele, é por isso que não é necessário imaginar-te, sei-te. Segismundo.

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Chover solidão. Chegaram a casa. Aprendi a andar à chuva, sabes?, já gosto da chuva, disse ela. Gosto da chuva porque me embrulhas nos teus braços, porque me prendes com as tuas mãos, disse ela ainda. A lição não é essa, disse ele, da chuva gosta-se em solidão. Segismundo.

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Dar uma mão. Porque a dor destila o que melhor há nas pessoas, é dever, quase imperativo cívico, ajudar os outros a sofrer, disse o orador à audiência. Ao escutar isto, de entre ela, a vasta audiência, ergueu-se uma mulher. Dirigiu-se, caminhou até ao púlpito, interrompendo a conferência. Na sala emergiu um burburinho. Ao aproximar-se do orador, a mulher desembaiou uma adaga e, acto contínuo, num último passo de aproximação, cortou-lhe a mão direita. O conferencista não fingiu a dor, o sofrimento que subitamente o tomou. Gritou, ao mesmo tempo que se agitou convulsivamente, numa tentativa de estancar o sangue infrene e, em simultâneo desespero, apanhar do chão a mão decepada. Como o orador tardava em agradecer o gesto altruísta da mulher, os responsáveis pela conferência decidiram confortar a audiência com um fundo sonoro preenchido pela canção With a little help from my friends. O Marquês.

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2004-10-18


Ó mãe! Disse o senhor dr. Bagão Félix, “o papel do ministro das Finanças é cobrar bem os impostos e conter a despesa”. Definido assim o seu papel, não se percebe o que o diferencia de uma dona de casa. Também não é para perceber. Qualquer um minimamente ilustrado sabe o que significa cobrar bem os impostos. E, melhor ainda, conter a despesa. Portugal não é, enfim, um mistério assim tão desmesurado. Nicky Florentino.

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O homem que devia dormir em serviço. A senhora chefe de gabinete do senhor dr. Santana Lopes informou que, na passada quinta-feira, antes de arribar ao evento Moda Lisboa, o dito cujo não dormiu a sesta. Devia ter dormido. Pois criaturas há que não devem desperdiçar o respectivo tempo acordadas. Nicky Florentino.

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Salubridade. Segundo a edição de hoje do Público, o PSD terá exigido uma determinada quantia em dinheiro para sair de um edifício que havia sido emprestado para albergar uma qualquer sede sua. A este tipo de compensação, que já havia acontecido em casos outros, o senhor dr. António Capucho chamou gentileza. Compreende-se. Extorsão não é uma palavra bonita. E, verdade, o facto de o PSD estar instalado em determinados edifícios terá prevenido ou impedido que estes, durante o fervor revolucionário e a sua ressaca, tivessem sido ocupados por indesejáveis. Como se sabe, a salubridade tem um preço. Há que pagá-la. Nicky Florentino.

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Agenda. Informou-o o Tomás. Três de Novembro, vinte horas, Pedro Carneiro a interpretar Xenakis. Copos apenas do outro lado da rua, em frente, no Picoas Plaza. Segismundo.

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It’s all right. Quase quatro, madrugada. Olá, disse ele. Olá, estranho, entra, disse ela. Beijaram-se. Sabia que eras tu, estava à tua espera. Ouve..., disse ela.
Tigers know their stripes
tigers know their game
but we are all so busy thinking people look at us
we miss the miracle in their eyes
.
Ele entrou, sorriu e disse acredito em coincidências, sabias? Porquê?, vinhas com vontade de ouvir esta canção?, perguntou ela.
Tigers also do a little act
when they know they are being checked out,
but you are not being studied
no you are not being judged
there is no BBC crew waiting for you to screw
.
Não, vinha com vontade de a dançar, respondeu ele. Ela agarrou-o, arrastou-o para o meio da grande sala,
So come on and do your little dance
do your little dance for me
there’s everything you need to do a little dance for me
!
onde dançaram. Dançaram como se tivessem o diabo no corpo.
There is choreography in traffic jams
a weird poetry in people walking by
there is music in the streets
harmony in manchines
there’s everything you need to do a little dance for me
.
Dançaram como se não houvesse mais vizinhos, Lisboa, mundo.
So come on and do your little dance
do your little dance for me
there’s everything you need to do a little dance for me
!
Dançaram a urgência, o instante.
Tigers know their stripes
tigers know their game
but we are all so busy thinking people look at us
we miss the miracle in their eyes
.
Pareciam loucos, loucos a dançar, possuídos, convocados pelo som, ela e ele.
So come on and do your little dance
do your little dance for me
there’s everything you need to do a little dance for me
!
Agitavam-se como loucos, em passos e movimentos preenchidos de frenesim.
There is choreography in traffic jams
a weird poetry in people walking by
there is music in the streets
harmony in manchines
there’s everything you need to do a little dance for me
.
Olhavam-se como loucos.
So come on and do your little dance
do your little dance for me
there’s everything you need to do a little dance for me
!
Até que o som baixou e eles se renderam ao silêncio que voltou à casa.
And tigers also stop at traffic lights.
Achas, acreditas mesmo que os tigres páram nos sémaforos?, perguntou ela, enquanto, com os braços esticados, se aproximava dele. Não, mas acredito que os tigres conhecem as suas riscas, disse ele, ao mesmo tempo que precipitava as mãos para as costas dela. E está tudo bem?, perguntou ela. Ele foi sincero, não, respondeu, não está tudo bem. Segismundo.

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Ir à escola. Afiou o lápis. Retornou ao lugar. Antes de se sentar, cravou-o na cabeça do colega com quem partilhava a mesa. A cabeça tombou abruptamente sobre o tampo. Ele observou demoradamente o efeito do seu acto. Era uma descoberta. E gostou. Gostou do primeiro dia de aulas, do seu primeiro dia de escola. O Marquês.

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2004-10-17


O jogo. Tau. (Tau). Nicky Florentino.

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Manifesto. Um liberal old fashion, temperado pela puta da vida, não se aflige. Irrita-se. Topa-os à distância. Percebe que os liberalangas onde não querem o Estado querem a moral. A moral deles. Não é melhor. Mal por mal, uma besta que seja visível. É mais fácil combatê-la. E, portanto, suportá-la. Nicky Florentino.

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Hossana no asfalto. Um modelo fórmula um da Ferrari foi oferecido ao Papa, para assinalar a efeméride dos vinte e seis anos da respectiva eleição para a honra de santo a quem não acontece o erro. Não foi por isto, folclore, que, como narra a lenda, deus martirizou o seu próprio filho. Nicky Florentino.

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Mehr Licht!. É bom que Rocco Buttiglione seja confirmado comissário europeu. Tem ele uma virtude rara, não conseguir fingir o que é. Quando quase nada se sabe sobre o complexo burocrático de barganha que é a União Europeia, o mínimo lapso de transparência, mesmo que em relação a criaturas com juízo cretino, é preferível à opacidade. Nicky Florentino.

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Pudim. Disse o senhor dr. Paulo Portas, “este orçamento é bom, é para o avô e para o bebé”. A boca não é doce. É destrambelhada. Nicky Florentino.

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Uma vez sem exemplo. Poema inédito de António Ramos Rosa, estampado na página quarenta e um da edição de hoje do Público.

O espaço do olhar é tão claro e aberto
que nós estamos no mundo antes de o pensarmos
e nada nele indica que exista um outro lado
de sombras incertas de silêncios abismais
Vivemos no seio da luz onde o inteiro vibra
com a sua evidência de claro planeta
e ainda que divididos vivemos no seu espaço uno
porque é o único em que podemos respirar
As nossas sombras não nos acolhem como folhas
envolvendo o fruto o nosso desamparo vem de mais fundo
e nele não podemos manter-nos temos de ascender
ao móvel girassol do nosso olhar
ainda que seja só para ver a fulva monotonia do deserto
A vocação da pupila é o imediato universal
quer caminhemos numa rua quer viajemos pelo mundo
quer ainda diante de uma página em branco
A palavra pode anteceder a visão mas também ela é atraída
para o luminoso espaço em que se desenha os seus contornos
Como poderia a palavra finjir o que lhe foge
sem a superfícies de um solo iluminado?

Oitenta outonos. Hoje. Ele. Segismundo.

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Matadores de pedra velha. Existe uma ponte românica em Vilar de Mouros. Já a pisei. Caminhei sobre ela para lá, para as azenhas, caminhei sobre ela para cá, no regresso. E recordo um jantar, o jantar no Retiro da Ponte, com vista sobre o rio e a ponte. Recordo o jantar em memória grave, grave de tão exacta. Sei agora que a ponte, aquela ponte, corre o risco de colapsar e perecer em ruínas. Apetece-me dizer, out of control, e não calo: puta que pariu quem tem as mãos nos bolsos e espera. A ponte é inocente e esperam. Esperam que caia. Esperam quietos. Puta que os pariu. Assassinos. Segismundo.

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Confirmação. Ele acordou. Não como costuma acordar. Acordou. Cheio. Cheio de um puta orgulho. Descobriu que o big fish é uma mulher. Que o abraço não tinha sido engano. Descobriu o que já sabia. Lacrimejou por isso. Por uma paz que não se diz. Não por a descoberta ser tardia. Como o mundo roda sobre si, sabe-se lá onde é que começa ou acaba o futuro. Segismundo.

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Eternal Sunshine of the Spotless Mind. O horizonte é um lugar para além das mãos, do seu alcance. Olha-se em frente. E está lá o que sempre esteve. Porém, momentos houve em que não foi aquilo que se viu. Trompe l’oeil, desvio, engano, distorção, não interessa. Olha-se em frente. E o que se percebe não é o que se perdeu, mas o que não foi possível perder. Tudo continua lá, a beleza, a humanidade, os fantasmas despertos, a cor dos olhos, o cheiro. É essa paz, confirmada, que abrasa. Puta de vida. Cheia de erros. Mas é essa também a sua inalienável graça. Por isso sofremos com ela. E aprendemos. A sofrer melhor. Como se fosse um filme. Que não é. Que não pode ser. Pois a vida acontece apenas em forward, contra o horizonte, não, nunca, na hipótese rewind, devolvida, resgate tardio da memória. Daí que as mãos se estendam para o futuro, para o lugar do encontro. É lá que está o que sempre esteve. Alguns futuros convergem para aí. Outros futuros apontam para outro lado. Que fazer? Continuar os passos em volta, porquanto existe um único fundamento vital. Heaven can wait. Segismundo.

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2004-10-16


Mãe flor. A menina Lurdes tratava delicadamente as flores. Eram não só uma importante fonte de renda para si, eram também a sua família, descendentes de Lurdes Flores, solteirona e namoradeira. Sabedor disso, o ti Abílio alfaiate, danado de ciúmes por a menina Lurdes andar embeiçada pelo Tomé, aproveitou-se de uma ausência dela e destruiu-lhe todo o jardim e alfobres anexos. Nunca nada tanto tinha doído à menina Lurdes. Quando se apercebeu dos estragos, a desgraçada velha tombou. Durante semanas ninguém foi capaz de lhe aplacar as dores, vertidas em infinitos fios de lágrimas. Sentia-se uma mãe a quem a morte levara todas as filhas. Enquanto isso, o ti Abílio alfaiate ria. E semeava o boato que o autor de tamanha malvadeza havia sido o Tomé. Por qual motivo a dor havia de atingir apenas um?, se podia atingir dois, pensava, de modo atinado, ele, o malvado ti Abílio. O Marquês.

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Caminho. O João é exacto. Não é de hoje. Segismundo.

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Let me sing you a waltz. Já não estás aqui, noto a tua ausência. Permaneço embrulhada no cobertor que nos cobriu enquanto olhávamos a chuva a cair lá fora, na varanda. Estou a ouvir agora The Willies do Bill Frisell. Não é, sentido, a mesma coisa. Arrefece sempre quando te ausentas. Porquê? O que há na natureza que a faz assim? Ou é impressão minha? Não sinto o sono. Mas merecia-o. Estou esgotada. Estou a imaginar-me a Célin de Before Sunset, a tocar e a cantar para ti. Para recompensar-te do que me leste quando fomos espectadores da chuva. Mas estás longe, foste para longe. Vais sempre para longe, tão longe. Foges. Sei que voltas. Mas, enquanto não voltas, arde-me a espera. Queria tocar e cantar para ti. Mas estás longe, tão longe. As tuas mãos também. E está frio lá fora. Boa noite. Escreveu-lhe ela. Segismundo.

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2004-10-15


Similitudes. Compreende-se que caiam desamparadas neste tugúrio as vítimas que demandam os tópicos mais bizarros. Seja como for, casos há, como este, para os quais ninguém está preparado. A puta da imaginação dos outros está sempre a ultrapassar os limites que se julgavam inultrapassáveis. Apenas nesse pormenor a imaginação se repete. Nicky Florentino.

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Esplendor esplendoroso. O Paulo tem razão. O João Pedro também. É isso que tem piada. Nicky Florentino.

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Sobre a credencial do reconhecimento. É deveras interessante quando algumas das mais relevantes personagem da galeria do Estado dissertam ou tecem considerações sobre a legitimidade. Acaso tivessem lido o desgraçado do Max Weber e convenientemente assimilado a respectiva prosa saberiam que a legitimidade não existe. O que existe são legitimidades. O que, convenha-se, complica a hipótese da conversa assertiva que habitualmente se destila a propósito do referido tópico. Não é, pois, necessário ir mais além. Até porque, por exemplo, recomendar a leitura de Habermas e de Luhmann a tais criaturas era o mesmo que estar a pregar aos rodovalhos. Nicky Florentino.

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Da excitação e da luz. Um jogo de futebol pode não realizar-se por supostamente não haver distância entre as claques de uma e outra equipa. Um jogo de futebol... Não se compreende. Ontem, na Assembleia da República, o senhor dr. Santana Lopes esteve tão próximo do senhor eng.º Sócrates e nada aconteceu. Também o que é que podia acontecer? Faísca não, pois isso é luz. Nicky Florentino.

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Captações, vi. Em Voyage au Bout de la Nuit. “Em casos como este, não há nada que recolha as palavras que dizemos para nos tranquilizar. O eco nada devolve, saímos da sociedade. O medo não diz sim nem não. Ele, o medo, retém tudo quanto se diz, tudo quanto se pensa, tudo”. Segismundo.

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Dança da chuva Ontem gostei de te ver a dançar aquela canção, disse ela, és estranho até quando danças. Estranho?, porquê?, perguntou ele. Não sei explicar, respondeu ela. Mas era a canção do Morrissey sobre o Hector, não era?, o que é que estavas à espera?, tentou ele defender-se. Mesmo assim, pareceste-me o que és, estranho, disse ela, não era necessário parar o carro, sair e dançar à chuva. Apenas isso, acrescentou ainda ela. Segismundo.

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Irrelevâncias sobre Derrida Ela, o que sabes sobre Derrida? Ele, sei que ele morreu. Ela, e para além disso, o que mais sabes? Ele, sei que não gostava de ser fotografado. Acedeu dar publicidade à sua imagem apenas depois de ter visto num jornal uma fotografia de Foucault com uma legenda a dizer Jacques Derrida. Ela, já percebi onde é que queres chegar. Segismundo.

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Prova da culpa. Preciso de uma legenda para esta fotografia, ajudas-me? Estás a ver esta fotografia?, és tu, disse ela. Sou eu?, reagiu ele surpreso. Sim, és tu, confirmou ela. E quem é que te autorizou a...?, perguntou-lhe ele, como se a polaroid fosse uma forma de lhe roubar a alma. Ninguém, é apenas uma prova, respondeu ela. Uma prova de quê?, interrogou ele. Uma prova da nossa culpa, disse ela. Culpa?, mas qual culpa?, quis ele saber. Não vejo qualquer culpa nesta fotografia, acrescentou ele, sem pausa. Pois é exactamente essa a culpa, nenhuma, a nossa, a tua e a minha. Devíamos ser culpados, disse ela. Segismundo.

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Película post-dogma. Três pares, casais, a sair de uma sala de cinema. Eles bocejam, consertam a gravata. Elas vêm atreladas, de mão dada ou sob o braço esquerdo deles. Aparentemente, ver o filme não lhes alterou o mundo. Como entraram, saíram. Soturnos, falsos, alienados, sem diferença, certos do mundo. Segismundo.

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Afinidades electivas. Exercício para se descobrirem afinidades e compatibilidades recorrendo a escassos recursos. Oferecem-se à companhia, qualquer que seja, quatro hipóteses. Orgy in Rythm, Art Blakey. ΨαπφαPsappha, Iannis Xenakis. The Mind Is a Terrible Thing to Taste, Ministry. Psychocandy, Jesus and Mary Chain. Se alguma das hipóteses não agradar à companhia, abandoná-la rapidamente. A inocência serve para outras coisas. Segismundo.

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Cumprir a imaginação. Tecla on. Volume para cima. Precipitou-se uma vaga de som grosso. Um estrépito chocou com as paredes, fazendo-as vibrar. Tornava o suplício. À vizinha apeteceu-lhe ser violenta. Fazer sofrê-lo. Imaginou-o apavorado, a chorar. Depois a gritar, guinchar, a pedir ajuda. Porém a voz era abafada pela música. Ninguém iria escutar e, por isso, acudi-lo. Ele iria agonizar demoradamente, antes de morrer. A vizinha decidiu-se. Procurou o gancho entre os utensílios da lareira. Agarrou-o. Abriu a porta de casa. E foi pedir ao vizinho, ao jovem, que baixasse o volume do som. O Marquês.

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2004-10-14


O ópio e depois. O ópio inundou-o. Por extensos instantes foi um prazer. A indolência nos gestos. O olhar vago e cheio. A presença de tudo, tudo tão próximo. A dinâmica acelerada e por vezes distorcidas das coisas. Depois aconteceu o primeiro embate. O corpo retraiu-se. A dor estava anunciada. Ia acontecer-lhe. A ressaca nunca falha. O Marquês.

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Re: Ironia de e por ti. O que posso dizer-te?... Sou de coisas simples, poucos princípios e escassa ordem. Apaixono-me por sorrisos, não por espíritos. E tenho dificuldade em alcançar as vertigens que estão sob a superfície e escoram invisivelmente as coisas e as pessoas. Engano-me. É por isso que me esforço pelo conforto da ironia. Mais da ironia de Sanches do que da ironia de Sócrates. Às vezes também me esforço por ser como Diógenes, cínico, assim. Suspeito que seja apenas uma forma de me fingir. Não sei. Agora não sei dizer-te mais. Dorme. Descansa. Um beijo para ti. Escreveu ele. Segismundo.

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Ironia de e por ti. Por que é que estremeces de modo tão permanente? De onde promana essa dúvida que te faz simultaneamente humilde e exaltado? São perguntas que coloco, embora sem endereço ou necessidade de resposta. Conheço um único lugar do teu corpo onde a incerteza nada altera. Não são os teus olhos cavados de castanho fundo, que são mentirosos, são as tuas mãos duras, brutas, quando em sossego, quietas sobre o meu corpo. De ti pouco mais sei. Sei que vibras pouco nos jogos de futebol da seleção nacional. Sei que não tens frio. Sei que me aconchegaste os lençóis. Sei que me deste um beijo na face. Sei que o teu cheiro está nesta almofada ao meu lado. Sei que foste embora. E tudo o que sei não sei. Não digo, não quero dizer. Mas tudo o que sei não sei. Boa noite. Até amanhã. Escreveu-lhe ela. Segismundo.

Referência



Concertação de agendas, ii. Ela, e onde é que vais estar no dia dez de Novembro? Ele, à noite, no Lux. Ela, já sabias? Ele, já, recebi um mail a semana passada. Ela, mas no dia nove não vais ver os Rammstein? Ele, vou, mas o dia nove é a véspera do dia dez. Segismundo.

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Concertação de agendas, i. Ele, dia vinte, The Magnetic Fields, Aula Magna, Lisboa; dia vinte e um, Marlango, La Riviera, Madrid. Ela, mas isso não é apertado? Ele, não, é música. Ela, Madrid... é aquela conversa da rodagem do carro. Ele, é. Ela, então também vou. Segismundo.

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Concertação de agendas, o. Ela, o jogo está quase a começar, vamos. Ele, vamos. Ela, depressa. Ele, não, devagar, como a selecção. Segismundo.

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2004-10-13


O silêncio e a oportunidade. Disse o senhor dr. Sampaio, “há momentos em que o Presidente da República tem que saber estar calado”. A doutrina não é má. Sempre é preferível um senhor presidente da República silente do que um presidente da República choramingas. Seja como for, a doutrina não parece ainda devidamente assimilada pela criatura. Instado a revelar ser iria embolsar o prémio que foi receber a Espanha das manápulas do rei lá do sítio, ao invés de se ter remetido ao silêncio, confessou. Disse o fulano, “desta vez, vai ser para mim. Os tempos estão maus”. Ora, que os tempos estão maus não carecia de confirmação presidencial. É sobejamente sabido. Nicky Florentino.

Referência



U tópico. O senhor dr. Mário Soares, o tal que convenientemente engavetou o socialismo, anda deveras preocupado, segundo anuncia, com o futuro da respectiva utopia. Deu-lhe para isto, agora. Ainda não percebeu que se o socialismo sobreviveu às suas, dele, senhor dr. Mário Soares, conveniências, há-de sobreviver ao mundo. Inteiro. Nicky Florentino.

Referência



Interrogação. Dei comigo a perguntar, o que é que este Filipe tem a ver com estoutro Filipe? Segismundo.

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Come on Pilgrim. O Luís já falou sobre o que se deve falar. A minha irritação é mais fenomenológica, com os peregrinos. Julgando-se ungidos pela divina providência, preenchem as bermas das estradas e as estradas, como se o caminho fosse deles, apenas deles. Percebe-se o que os move. Se a fé move montanhas, à fé não é difícil mover carcaças, chassis de carbono preenchidos de carne e entranhas. Mas se se percebe o que os move, não se vislumbra razão alguma, elaboração de juízo, que os mova. Isso preocupa, pelo obscurantismo que revela. A senhora nada lhes vale. Mas a estrada, julgam, é para eles. Como se fosse um milagre. Não é. É apenas lapso de trambelho. E excesso de superstição. Segismundo.

Referência



Captações, v. Em Voyage au Bout de la Nuit. “Só nos falavam dos seus tesouros mentais, os alienados, com uma porção de contorções horrorizadas ou ares condescentes e protectores, como se fossem muito poderosos e meticulosos administradores. Nem um império faria aquela gente abdicar das suas cabeças. Um louco não passa de vulgares ideias de homem, embora bem fechadas numa cabeça. O mundo não lhes atravessa a cabeça, e isso basta. Uma cabeça fechada transforma-se numa espécie de lago sem rio, numa infecção”. Segismundo.

Referência



O louco do fim da rua. O senhor António, que mora algures no fim da rua Teófilo Braga, rogou-lhe atenção. Debitou a ladainha do costume. Disse que foi amaldiçoado por um mágico do exército. Não é mania. Ele vê sombras lá em casa. E frequentemente vê-se aflito, queixou-se ele. Como se tivesse um nó de fogo dentro na barriga, explicou ainda. A origem do mal foi um copo de vinho com droga que lhe deram lá no quartel, em Lisboa, vai para aí um ror de anos. A fraqueza da cabeça decorre daí. Suspeita ele que lhe deram a droga por ordem, combinada, do exército e do fulano, o mágico, que lhe queria mal. E queria-lhe mal porquê?, por inveja. E disse também que a rapariga da ervanária tinha essa mesma ideia sobre o assunto. Concerteza que o mágico não lhe queria bem, mas mal, disse-lhe ela. Antes de se calar, o senhor António falou, falou muito. Arrumou finalmente o discurso, o senhor António, assim, tenho o juízo enfraquecido, mas tenho uma caligrafia alto lá com ela, que até admira um general. Sou capaz de escrever a uma rapariga por quem esteja enamorado. Eu sou inocente. E deus sabe disso há trinta e dois anos. Sabe?, senhor, deus é um espírito invisível, que pode e sabe tudo. Sabe, por exemplo, que me chamaram filho da puta só por eu ter dito boa tarde. Deus tem poder para tudo, tem um poder glorioso, e vai salvar-me. E matar o mágico que me fez mal. O senhor acredita nisto?, não acredita? Ele mentiu, respondeu sim. Segismundo.

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Confutatis maledictis. Não digo. Hoje chorei. Depois não suportei estar no Nimas, saí antes, muito antes, de o filme acabar. Terei de lá voltar. Hoje chorei. Mas não digo. O apetite falhou-me. A fome também. Senti o corpo a quebrar-se, como se tomado por uma anestesia. Há uma falta que me corta, rasga, sangra. Refugiei-me em casa. Não digo, não confesso, mas senti-me só. Estranhei a casa. Faltou-me a coragem para abrir a varanda, para espreitar o rio. Há frio lá fora. Não sei das tuas mãos. Hoje reencontrei um poema da Gabriela Llansol. Não digo qual. Sedução.

Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém.
Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles
A boca, os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar
Florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta.
Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder
Às cortinas o dom de sombrear. Pegar então num
Objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar
Num livro uma página estrategicamente aberta.
Entregar-se a espaços vacilantes. Ficar na dureza
Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra
Que te quer. Soprá-la para dentro de ti
até que a dor alegre recomece.

Quero apenas, pelo que talvez diz de mim, que este poema seja para ti. Hoje chorei. Não digo. Também não escondo. E estive a dizer palavras, textos, sobre o som de Festina Lente, de Arvo Pärt. Começo a gostar deste jogo. Mas começo também a perceber que só faz sentido se for partilhado, se merecer a audiência exacta. É por isso que repito, repito para ti, fazes-me falta. Quero as tuas mãos. E não troco a boulevard pelo resort. Hoje chorei, não sei se te disse. Se disse, não quis dizer. Às vezes, tantas, acontece, engano-me. Boa noite. Escreveu-lhe ela. Segismundo.

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Campanha alegre. Naquele ofício não havia facilidades. Tudo custava. Ainda assim, os homens pareciam felizes. Entregavam-se às missões com decidido entusiasmo e nunca reclamavam das condições de trabalho, do horário ou da remuneração. Um dia, porém, tudo mudou. Num dos homens as costas rasgaram-se e, pelas escápulas, cresceram asas. As asas eram revestidas por uma plumagem clara. Nasceu nessa data a vaidade, porque o homem asado, a quem passaram a chamar o anjo, entendia que o serviço lhe deslustrava as penas e, por isso, recusou-se a trabalhar entre a fuligem. Aos outros, nesse exacto instante, fugiu a felicidade, mesmo que fosse uma felicidade fingida. Tornou ela apenas depois de o dito anjo ter sido encontrado morto, com as asas arrancadas. Os outros, para aplacarem a estranha sensação de miséria que lhes havia assomado, decidiram assassinar o desgraçado. E com requinte o fizeram, utilizando grandes alicates no feito. Ninguém pode tolerar que um qualquer infeliz, por sortilégio da natureza, a quem lhe foram proporcionadas asas, possa destruir a alegria no trabalho. Por isso, mas também por que lhes agradou participar no martírio do anjo, mataram-no. O Marquês.

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2004-10-12


Ele. Uma besta, no sentido ruminante do termo, é o que ele é quando se empresta a uma pose de homem de Estado para fazer o ruído que ele julga que não é. Nicky Florentino.

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Vida(s). O enunciado é poético, “compromisso com a vida que existe para além do orçamento”. É por isso que soa a engano. A vida que existe para além do orçamento não é assim. Nicky Florentino.

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Intimação. Ou tu(do) ou nada. Estou nesta fase. Aprendi que não se troca a boulevard pelo resort. Ensinaste-me tu. E quero as tuas mãos. Não digo, não confesso, sopro apenas, quero as tuas mãos. Muito. Escreveu-lhe ela. Segismundo.

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Re: Convocatória. Também tenho apenas um corpo. Mas muitos lugares para estar. Tentarei ser a tua companhia. Não sei se conseguirei ser. Um beijo para ti. Escreveu ele. Segismundo.

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Convocatória. Tenho dois bilhetes para o concerto do Rufus Wainwright, amanhã, na Aula Magna, e apenas um corpo. You know what I mean. Escreveu-lhe ela. Segismundo.

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O ritual da espera. Não sei do teu paradeiro. Também não sei do meu paradeiro. É a consequência. Sinto frio. E, ao mesmo tempo, ardo. Como se fosse um corpo em ritual, em ritual com leopardos sedentos. Leoparden brechen in den Tempel ein und saufen die Opferkrüge leer; das wiederholt sich immer wieder; schlieslich kann man es vorausberechnen, und es wird ein Teil der Zeremonie, escreveu Kafka. É o que és para mim. Um leopardo que volta, inscrito no lugar desta casa. Mesmo se não sei o teu paradeiro. Agora vou deitar-me. A fadiga verga-me. E faltam-me as tuas mãos em mim. Boa noite. Escreveu-lhe ela. Segismundo.

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Serviço de táxi. Chamou um táxi. Ela queria partir imediatamente. A outra, tomada pelo ciúme, para impedir a sua partida, desenhou um círculo no chão do hall de entrada da casa e colocou lá, destruído, um relógio, pretendendo simbolizar a paragem do tempo. Como ela insistia que, não obstante a destruição do relógio, o tempo continuava a fluir, a outra assestou-lhe repetidas vezes com um martelo nas mãos e nas pernas. Terminou ali, derradeiramente, a urgência dela. Entretanto, já tarde, chegou o táxi. O Marquês.

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2004-10-11


Compromissos de engano. Portugal é o nome do compromisso do senhor primeiro-ministro. Disse ele. Compreende-se. Portugal é mais fácil do que os portugueses para compromissos. Pois a estes, iludidos de liberdade, é necessário dizer-lhes umas lérias, para os enganar. Nicky Florentino.

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Solilóquio. O senhor primeiro-ministro falou. Por um único motivo plausível. Ainda não aprendeu que é preferível estar calado. Ou falar só para si e para os seus botões. Nicky Florentino.

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Catecismo da opacidade. Uns quantos empresários andaram entretidos a congeminar um código de ética empresarial. Sabia-se que não existia. Não se sabia é que era necessário. Pois, como é sobejamente consabido, a ética, esse empecilho axiológico, não dá lucro. Nicky Florentino.

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O futuro não pode começar. A propósito do futuro secretário-geral da tribo comunista, disse o senhor Jerónimo de Sousa, “não sou candidatável nem sou autocandidato. A decisão da escolha do secretário-geral do PCP compete, fundamentalmente, aos comunistas e há cento e oitenta membros do comité central envolvidos no processo de construção colectiva de uma solução”. Prova de que a dialéctica, ali, não funciona, como nunca funcionou. Pois isso seria, seguro, liberalidade a mais naquela casa. Nicky Florentino.

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Tirem-no deste casting. Veemente, exclamou ontem o senhor dr. Santana Lopes aos açorianos, “não votem em função dos líderes nacionais”! Notado o desplante da criatura – que, ao mesmo tempo que destilava discurso, pretendia que esquecessem quem discursava -, poderia dizer-se que é isto o máximo possível do cabotinismo. Porém, talvez não seja aconselhado fazê-lo. Já. Logo à noite, o senhor dr. Santana Lopes irá proferir uma declaração à pátria. Ver-se-á, então, até onde alcança a desfaçatez e o malabarismo patético do fulano. Nicky Florentino.

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Farewell. O Vincent já não mora aqui, entre nós. Foi. Desgraça. Segismundo.

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Sinal. Chove. Está frio. Já estás longe outra vez. Falta-me o amparo das minhas espaldas arrefecidas, as tuas mãos. Vou deitar-me, não sei se dormir. Vou continuar a ler Herzog, de Saul Bellow. A porta do quarto fica aberta. É um sinal para ti. Boa noite. Escreveu-lhe ela. Segismundo.

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Destino. Percebia-se o mar revolto, cavado, em fragorosas convulsões contra a margem, estendendo-se longamente sobre ela, antes de se devolver a si. Havia apenas uma pequena parcela de mar sereno. Cinco focos largos de luz, como se fossem os dedos de uma das mãos de deus, trespassavam o denso manto de nuvens negras e, por uma espécie de carícia, conseguiam sossegar a superfície atlântica. Em torno, o mar pulsava a raiva e ocoava as graves ameaças enunciadas pela sua rebentação. Foi desta paisagem, cortada pela chuva, que nasceu uma necessidade. Pão de ló. Sabes onde é que fica Alfeizerão?, perguntou ele. A resposta foi um sorriso. Depois regressaram ao carro. Já tinham encontrado um novo destino comum. Segismundo.

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Flores de aço. Entre a praia da Fraga e a praia Norte foram instaladas oito flores de aço gigantes. Perto delas, em particular de uma, revelou-se a eles, ela e ele, a imponência do mecanismo. As suas três pétalas, tocadas pelo vento, rodavam lentas e chiavam. Dom Quixote não hesitaria em desafiar qualquer daquelas flores gigantes para um duelo. Mas eles, ela e ele, na circunstância, limitaram-se a constatar a respectiva pequenez. Ao fundo, o mar zangado foi testemunha. Segismundo.

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Sangrar. O único sangue que interessa deter nas mãos é o sangue da eterna aliança, o sangue que tem o odor vermelho da dor. Nenhum outro. Pois qualquer outro é sangue doce ou demasiado destilado, amargo. O Marquês.

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2004-10-10


Consequências da liberdade. Hoje, não senti a falta do comentário do senhor Prof. Doutor Marcelo Rebelo de Sousa ou o seu contraditório. Nunca senti. Nicky Florentino.

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Da democracia. Défice democrático é uma das expressões mais estúpidas, no sentido em que nada reporta analiticamente. A democracia não existe. Ou melhor, existe numa forma particular de não existir, enquanto limite, horizonte. Neste sentido, o que existe sempre, porquanto a materialidade democrática não concretiza plenamente o enunciado democrático, é um défice democrático. Ou seja, o défice democrático é o que, por definição e hipótese, é e pode ser a democracia. Nicky Florentino.

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Obituário. Chove lá fora. E Derrida já foi, partiu. Segismundo.

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Captações, iv. Em Voyage au Bout de la Nuit. “Uma vez chegado o Inverno, claro está que nos custa regressar, dizer que aquilo acabou, confessá-lo. Apesar de tudo ficaríamos ao frio, à idade, a esperar mais. Compreende-se. Somos ignóbeis. Não devemos querer mal a ninguém. Gozo e felicidade acima de tudo. É, de facto, a minha opinião. De resto, quando começamos a esconder-nos dos outros é sinal de que temos medo de nos divertir ao seu lado. Só por si já é uma doença. Seria preciso saber por que motivo teimamos em não curar a nossa solidão”. Segismundo.

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She’s an easy lover. A noite empresta facilidade às vontades. Ela, que se jogava ao ritmo da música, investiu repetidos olhares sobre ele. Não era uma forma de clamar socorro. Jingava languidamente o corpo. Percebia-se-lhe o desejo. E ela confirmou-o no momento em que se insinuou sobre ele. Sabes quem eu sou?, perguntou-lhe ela. Ele respondeu não e, avisado pela canção que se ouvia,
she gave me her mind,
she gave me her body,
but she gave it to everybody

acrescentou e, para ser sincero, não quero saber. Segismundo.

Referência



Pronto-socorro. Ele, olá, por que é que estás a chorar? Ela, porque o meu namorado é uma besta. Ele, se assim é, continua a chorar, nada mais podes fazer quanto a esse problema. Segismundo.

Referência



Quatro vez quatro. O jipe ultrapassou o limite. O condutor t(r)emeu pela vida. O outro, ao lado, permaneceu impávido, como se não tivesse consciência do que estava a acontecer. O condutor ficou espantado com tamanha calma. Enganou-se. Naquele instante não era calma, mas indiferença, o que o outro revelou. Ao regressar a si, preencheu um único gesto, tocou no ombro do condutor. E perguntou-lhe estupidamente estás bem? Não, não estava bem. E o jipe também não. Segismundo.

Referência

2004-10-09


Re: Mãos. Não sei até quanto vale o último adeus. É o que te posso dizer. Um beijo para ti. Escreveu-lhe ele. Segismundo.

Referência



Mãos. Alonga-se a madrugada. Não consigo dormir. Semeaste o engano no meu corpo. Onde estão as tuas mãos? Sinto-me incapaz de me confirmar sem elas. Quando voltas? Diz-me quando voltas. Quero ouvir contigo aquela canção que diz que os tigres páram nos semáforos. Ou aquela sobre o Hector, que tens o hábito de trautear. Escreveu-lhe ela. Segismundo.

Referência



Chuva. O meu corpo outonou subitamente. Arrefeceu. Recolheu-se. Fechou-se na forma deixada pela tua ausência. Algo me perturba. Não digo o quê. Os lençóis ainda exalam o perfume da canela que, com as tuas mão, espalhaste no meu corpo. Enebria-me esse cheiro. Mas estou sozinha. Pouco me importa a chuva que tomba na varanda. Ouço-a, mas não a sei interpretar. Desconheço ainda o prazer, que me prometeste ensinar, de encontrar o corpo com ela. Quando voltas? Diz-me quando voltas. Traz-me o regresso das tuas mãos, do teu peito, dos teus olhos. Arde-me a espera. Mas não digo. Agora vou tentar dormir. Boa noite. Escreveu-lhe ela. Segismundo.

Referência



O viúvo. Ela ameaçou, pediria o divórcio e a tutela das crianças se ele continuasse a frequentar o prostíbulo. Ele, por mero gozo, preferiu ficar viúvo. E ficou. Das crónicas sabe-se que a morte que lhe aconteceu, a ela, foi dolorosa. E ele continua, como antes, a frequentar o prostíbulo. O Marquês.

Referência

2004-10-08


Show business. A propensão a tudo tornar novela, caso da vidinha, tem como consequência a despolitização da política. Mas compreende-se que assim tenha que ser. Os gentios percebem de enredos, tramas, não percebem puto de política, de realpolitik. Nicky Florentino.

Referência



Edited by. O mr. editor mandou-lhe correio. Para além de todas as simpatias, remeteu o mr. editor um anexo curioso. Lido, pensou ele que tomar as mulheres como objecto de análise está cada vez mais difícil. O problema não são apenas a opacidade do objecto, a sua resistência à teoria, os enganos a que obriga ou submete. O problema é ainda pior, inusitado. Atinge, mesmo, o estilo em que pode ser redigido o raio do capítulo de um livro. Tudo o que foi fácil está a tornar-se difícil. Cada vez mais. Como prova, reporta-se abaixo parte desse anexo.

Presentation and formatting

Manuscript length: The maximum length of each chapter is 10,000 words, everything included.

Language: Use British English.

Number of decimals: Present percentages as integers (no decimals). Presente all other figures with no more than two decimals. Three decimals is permitted for R-squared.

Levels os statistical significance: Use asterisks to indicate levels of statistical significance.

Logistic regressions: Analyses reporting logistic regression coefficients should report the coefficientes themselves, not exponent β.

Gender: In tables/figures as well in the text, use the term “gender” rather than the term “sex”. If you need to talk about anonymous individuals in singular form and cannot avoid using a pronoum, use the phrase “he or she” rather than “he” or “she” alone. Since “he or she” becomes clumsy if used repeatedly, try to avoid it to the extent possible. Often (but not always), this can be accomplished by switching to the plural or the passive form. In case you need help, the APSA style manual provides further advice on how elegantly avoid sexisms.
Segismundo.

Referência



Captações, iii. Em Voyage au Bout de la Nuit. “Eu tinha o hábito e até mesmo o gosto destas íntimas e meticulosas observações. Por exemplo, quando nos detemos no modo como são formadas e proferidas as palavras, as nossas frases não resistem lá muito ao desastre do seu cenário baboso. Mais complicado e aflitivo do que a defecação é o esforço mecânico da conversa. A corola de carne entumecida, a boca que se convulsiona a soprar aspira e debate-se, expele toda a espécie de sons viscosos através da barragem pestilenta da cárie dentária, que castigo! No entanto, aí está o que nos exortam a transpor em ideal. É difícil. Como não passamos de recintos com tripas mornas e quase apodrecidas, havemos sempre de ter dificuldade com o sentimento. Estarmos apaixonados não é nada, mantermo-nos os dois juntos é que é difícil. A imundície, essa, não procura resistir nem desenvolver-se. Aqui, neste ponto, somos bem mais infelizes do que a merda; no nosso estado, a fúria de preservação constitui uma tortura incrível”. Segismundo.

Referência



A disputa continua (íntima). Amanhã, almoço na York-House, às Janelas Verdes, pode ser?, perguntou ela. Pode, respondeu ele, mas continuo a querer a edição d’Les Chants de Maldoror com as ilustrações de Magritte. E eu continuo a querer a edição d’Les Chants de Maldoror com as ilustrações de Dalí, retorquiu ela, mas isso é duelo para continuar à noite, é um jogo que se pode jogar apenas à noite, por motivo óbvio. Motivo óbvio?, qual motivo óbvio?, demandou ele explicação. A necessidade de intimidade, respondeu-lhe ela. De facto, o motivo era óbvio, mas ele ainda não tinha percebido. Segismundo.

Referência



Fuga. Ela, em sussurro, posso dizer-te um segredo? Ele, não, se é segredo. Ela, é sobre mim, é sobre o meu passado. Ele, é um segredo, deixa que continue a sê-lo, não me interessa o teu passado. Ela, e o meu presente?, e o meu futuro? Ele, o teu presente e o teu futuro são armadilhas, não sei ainda o que me escondem. Ela, e queres saber? Ele, não, deixariam de ser armadilhas. Ela, preferes, então, cair nas armadilhas? Ele, já estou a cair na primeira, só não sei se conseguirei evitar a segunda. Ela, é provável que, para ti, o futuro não chegue a ser uma armadilha. Tu foges. Ele, sim, fujo, mas não sei para onde. Ela, é lógico, quem foge não tem destino, a fuga tem apenas origem. Fugir é ir, não é ir por ir para ali ou para acolá, é ir por não se poder estar, é ir por não se querer ficar. Segismundo.

Referência



Inquérito. Pergunta, andas amargo? Resposta, não, ando louco. Pergunta, mais? Resposta, não, menos, é esse o problema, falta-me loucura. Pergunta, vamos, então, jantar? Resposta, vamos. Segismundo.

Referência



Requiem. O maestro atravessava um período de penúria e isso notava-se tanto na sua roupagem quanto no seu asseio. O inverno havia sido pouco rigoroso, poucos pereceram. A primavera já chegara e o tempo cálido fazia os corpos menos propensos a tornarem à terra. Desde Setembro até Abril aconteceram na cidade apenas dois funerais. Por isso, o rendimento pelos serviços prestados baixara drasticamente. Tomou, então, o maestro a decisão de estimular a procura dos seus serviços. E, num misto de necessidade e de prazer, começou a estrangular as jovens das melhores famílias, utilizando em tal empreitada cordas de violino. O Marquês.

Referência

2004-10-07


O fim do mundo (português) em cuecas. Portugal está a acabar, embora não a acabar como Portugal. Portugal está a acabar por tornar-se excessivamente Portugal. Daí que, próximo do fim, o que é necessário não é um choque tecnológico ou sequer a reforma do Estado. Não é necessária mais modernidade. A que existe, no chão e entre os corpos em que existe, existe em sobejo ou excesso. O que é necessário é resgatar o tradicional sentido do pudor, da vergonha, o contrário da desfaçatez que quase já ninguém, taquepariu, sequer sente a necessidade de dissimular. Nicky Florentino.

Referência



A um amigo nada se recusa. O nível de insolvência, de dissolução da pátria grei atingiu um limiar preocupante. Não por o senhor Prof. Doutor Marcelo Rebelo de Sousa, pressionado, ter decidido deixar de falar na TVI, aos domingos. A vida é assim mesmo. Não há inocentes nesta paródia. Mas por, por isso mesmo, o dito cujo ter sido recebido, em regime de urgência, pelo senhor presidente da República. As lágrimas devem ter-lhe sulcado o rosto. Enfim, este é mais um episódio de confirmação que o senhor presidente da República quase não existe. No que existe, apesar da utilidade, existe para nada. Ou seja, para os amigos. Não é isso ser-se republicano. Nicky Florentino.

Referência



Dar o corpo ao manifesto. Há sempre alguém que não tem noção das proporções. Que fazer? Continuar. Segismundo.

Referência



Captações, ii. Em Voyage au Bout de la Nuit. “Os homens apegam-se ao diabo das recordações, a todas as suas desgraças, e é impossível fazê-los sair delas. Ocupam-lhes a alma. Vigam-se da injustiça do presente revolvendo no fundo de si próprios o futuro, juntamente com a merda. Bem no fundo, todos eles justos e cobardes. É a sua natureza”. Segismundo.

Referência



Estranho engano. O que mais estranho na tua estranheza é a tua falta de aflição, de urgência, disse ela, com a cabeça pousada sobre o peito dele e a fitá-lo nos olhos. Como é que convives com a inquietude?, com os demónios que pulsam dentro de ti?, interrogou-o. É simples, a tudo isso chamo desassossego, respondeu ele. Mas isso é um modo de te enganares, censurou-o ela. Talvez, mas não sinto o engano, defendeu-se ele. Mas esses, os não sentidos, são os piores enganos, disse-lhe ela. Segismundo.

Referência



Fazer dúvidas. Ela, consegues antecipar o fim? Ele, quando tenho confiança, não. Em tais circunstâncias, o fim é um cenário que sinto implausível. Ela, e isso é o quê?, um modo de te enganares? ou um modo de deixares enganar? Segismundo.

Referência



Miséria confessada. Ela, por amor, o que é que já fizeste? Ele, chorei. Ela, só? Ele, não, também chorei por outros motivos. Segismundo.

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A civilização da cidade, ii. Um qualquer dia, não é possível precisar qual, a parte da multidão dos pés lavados percebeu fortuitamente que o sangue também permitia desencardir os pés. Passaram, então, a sangrar as vítimas que antes apenas obrigavam a chorar. Retalhavam-lhes os corpos e deixavam escorrer o sangue para as tinas onde, depois, iam lavar os seus pés. O Marquês.

Referência

2004-10-06


Sobre o predicado calar. A anunciada desaparição do senhor Prof. Doutor Marcelo Rebelo de Sousa do quarto canal, a TVI, significa que se perdeu em entretenimento e em liberdade. Que se tenha perdido em entretenimento é uma desgraça. A alegria e a felicidade jamais devem faltar em qualquer lar. Seja como for, vai-se o Prof. Doutor Rebelo de Sousa vem a Quinta das Celebridades. Que se tenha perdido em liberdade pouco importa. Qualquer gentio sabe, por lição ou na carne, que é perigoso ser-se livre. E há sempre alguém que gosta de colocar mordaças. Sempre foi assim. Vai continuar a ser. Pois o que tem que ser tem muita força. Nicky Florentino.

Referência



O contraditório silêncio. Há uma inominável criatura, em senhor ministro dos Assuntos Parlamentares, que veio pedir baias para aquelas aparições dominicais do senhor Prof. Doutor Marcelo Rebelo de Sousa na TVI. Que era necessário o contraditório ou o raio que o parta. Evidentemente que os putativos comentários do senhor Prof. Doutor muitas vezes eram impressionistas e de conveniência. Qualquer pessoa com um índice mínimo de trambelho sabia isso. Assim como sabia que, uma vez ou outra, o tal senhor Prof. Doutor parafraseava o Financial Times. Mas o que o tornava verdadeiramente incómodo não era isso. O fulano era inconveniente por não nutrir particular simpatia pelo senhor dr. Santana Lopes. E isso, bem ponderadas as coisas, não é motivo para reclamar o contraditório. É mais motivo para reclamar o seu silêncio. Foi o que, de facto, aconteceu. Nicky Florentino.

Referência



Captações, i. Em Voyage au Bout de la Nuit. “É preciso eliminar a vida exterior, de igual forma transformá-la em aço, em qualquer coisa útil. Tal como ela era, não lhe tínhamos amor suficiente, é esta a razão. Temos, pois, de fazer dela um objecto, algo sólido. É a Regra”. Segismundo.

Referência



Re: Companhia. Falas do Magritte d’Les Chants de Maldoror? Caso seja, eu, se perder puder, pago com Dalí, também d’Les Chants de Maldoror. Ou, então, com noites de Outono. O que te doer mais. Um beijo para ti. Escreveu-lhe ele. Segismundo.

Referência



Re: Companhia. Logo, antes do pecado, se é antes do pecado de ver o rio da varanda, primeiro no cinquenta e quatro da Jau, depois no sete da Costa do Castelo. Sem ninguém mais, sem testemunhas. Eu por Lawrence ou Eliot. Tu por Auden ou cummings. Respectivamente. Ninguém mais. Não são admitidas desistências. Eu pago com Magritte. E tu? Escreveu-lhe ela. Segismundo.

Referência



Companhia. Logo, onde? Na Casa do Lago?, na Jau, cinquenta e quatro. Ou nos Meninos do Rio?, no número sete da Costa do Castelo. Um beijo para ti. Escreveu-lhe ele. Segismundo.

Referência



Re: Do mal errante. Neste momento não posso falar-te da Gabriela Llansol, não consigo. O que posso fazer é ler-te textos dela. Na próxima madrugada. Agora tenta descansar. Dorme bem. Um beijo para ti. Segismundo.

Referência



Do mal errante. A insónia está instalada em mim, domiciliou-se fundo. É já madrugada, muito madrugada, passa das seis. Faço-te por isso um pedido: fala-me da Gabriela Llansol. Preciso ouvir-te. Desculpa. Escreveu-lhe ela. Segismundo.

Referência



Apelo. Decidi guardar para mim a distância do teu corpo, imaginá-lo, e deixar ecoar a tua voz grave no meu peito. Ressoa ela. Não digo o ardor que sinto por isso. Sofro-o, mas sem mágoa. Sei que quando regressares conseguirei aplacá-lo. Agora, já o sono se vinga de mim. Vou recolher-me ao leito. Mas deixo a porta do quarto aberta. É um sinal para ti. Vem, rapaz. Quero dizer-te meu rapaz. Quero ver os teus olhos cheios de castanho. Quero enconchar-me no teu regaço. Não demores. Boa noite. Escreveu-lhe ela. Segismundo.

Referência



A civilização da cidade, i. Era uma cidade da multidão. A multidão tinha os pés sujos, era essa a sua identidade. Não havia aparências naquela cidade, todos tinham os pés sujos. A multidão vivia comprimida num espaço estreito, de edifícios degradados. Devido à morfologia da cidade, aí não existiam segredos. Também não existia solidão. Tudo acontecia aos olhos de outros, testemunhas do que acontecia e da vida. Um dia, porém, sem que se tenha logrado descortinar porquê, um dos da multidão decidiu lavar os pés. Lavou-os com as suas próprias lágrimas e reclamou-se o limpo. Uns quantos ficaram impressionados com o acto e, imitando-o, decidiram lavar também os pés. Os outros, por apatia ou determinação, não verteram lágrimas e continuaram com os pés encardidos. Como consequência, a multidão dividiu-se. Continuou a existir a multidão dos pés sujos e, a par, surgiu a seita dos pés lavados. Apesar das diferenças e das recíprocas recriminações, a convivência entre uns e outros foi sendo pacífica e tolerada. Até ao dia em que, cansados de lavar os pés com as próprias lágrimas, os dos pés limpos obrigaram alguns dos com pés encardido a chorarem sobre os seus pés. Capturaram-nos, açoitaram-nos violentamente, sem aviso, e vergaram-lhes a face até aos pés dos que os vergastavam, por forma a aproveitar todo o líquido lacrimal derramado. Ao princípio a lavagem dos pés foi o motivo porque supliciavam os outros. Depois, no entanto, o motivo passou a ser outro, o gozo que lhes assomava por supliciarem os outros. Ainda hoje é esse gozo que assegura a existência daqueles com os pés lavados. O Marquês.

Referência

2004-10-05


Never ending (hi)story. O senhor dr. Carlos Carvalhas anunciou que vai deixar de ser o senhor secretário-geral do PCP. O mundo como ele é conhecido aproxima-se do seu fim. É a voragem da dialéctica a acontecer. Nicky Florentino.

Referência



Clube do Bolinha. Consta que o senhor eng.º Sócrates não inscreveu um número regulamentar de mulheres na lista para a comissão política nacional do PS que submeteu ao congresso da tribo. Compreende-se. O homem é esteta e mulheres bonitas não há muitas. Para além disso, se era para lhes bater, às mulheres, que é o que é coisa de homem, melhor mesmo é que elas sequer tenham chegado a ser propostas para o referido órgão. Macho é macho. Macho que não aprecia as complicações das mulheres é ainda mais macho. Quanto aos regulamentos... isso não interessa. Um partido político é um partido político, uma agência cujas necessidades estão acima, sempre acima, das minudências formais. Nicky Florentino.

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Re: Repetir ontem. De ontem recordo sobretudo um gesto, o indicador e o médio da tua mão direita a calarem os meus lábios no silêncio. Não querias ouvir a palavra adeus. Eu também não a queria dizer. Foi por isso que te abracei, para te deixar a forma e a vontade da minha ausência. Só isso. Nada mais. Um beijo para ti. Escreveu-lhe ele. Segismundo.

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Repetir ontem. O meu corpo reclama. Os meus olhos também. Já não vejo aquele rapaz de que te falei e que voltei a encontrar na madrugada de domingo. Já li o livro do Blaise Cendrars que ele, como surpresa, me deixou no tapete do hall de entrada. Sabes?, ontem ele abraçou-me na rua, quando, descida a Nova da Trindade, encontrámos a Garret. Esteve muito tempo a tocar-me e a olhar-me a face. Parecia que estava a fazer um reconhecimento. As outras pessoas passavam, algumas olhavam, mas ele não se importou. Não estranhei. Embora estivéssemos cercados, os seus gestos fizeram-me sentir numa bolha íntima, como que fundidos. Ele segurou-me, olhou-me nos olhos, nada disse, como se me estivesse a contemplar, e, depois, abraçou-me, num abraço longo, como se pretendesse abrigar-se em mim. Senti-o meu, entregue, como nunca tinha acontecido antes, na rua. Houve exibição no acto. Mas a exibição foi para mim. Agora ele já não está aqui, ao meu lado. Ele foi para longe, para o jazz. É por isso que, hoje, a noite está mais fria e me arde, como nunca me ardeu, a espera. Não vou dormir, não consigo. Vou ficar à espera. Ele sabe onde eu moro. Ele não sabe que quero falar-lhe sobre Cendrars. Que quero encontrar-lhe o peito. Que quero as minhas mãos nas suas costas. Que quero repetir, tudo. Mas sabe que a porta do quarto está aberta. É um sinal para ele. Vem, não demores, rapaz. Começo a sentir que a tua falta, a tua ausência, afinal, também se sentem. Ardem-me. Ardem-me muito. Espero um socorro neste incêndio. Escreveu-lhe ela. Segismundo.

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2003/2024 - danados (personagens compostas e sofridas por © Sérgio Faria).