A civilização da cidade, i. Era uma cidade da multidão. A multidão tinha os pés sujos, era essa a sua identidade. Não havia aparências naquela cidade, todos tinham os pés sujos. A multidão vivia comprimida num espaço estreito, de edifícios degradados. Devido à morfologia da cidade, aí não existiam segredos. Também não existia solidão. Tudo acontecia aos olhos de outros, testemunhas do que acontecia e da vida. Um dia, porém, sem que se tenha logrado descortinar porquê, um dos da multidão decidiu lavar os pés. Lavou-os com as suas próprias lágrimas e reclamou-se o limpo. Uns quantos ficaram impressionados com o acto e, imitando-o, decidiram lavar também os pés. Os outros, por apatia ou determinação, não verteram lágrimas e continuaram com os pés encardidos. Como consequência, a multidão dividiu-se. Continuou a existir a multidão dos pés sujos e, a par, surgiu a seita dos pés lavados. Apesar das diferenças e das recíprocas recriminações, a convivência entre uns e outros foi sendo pacífica e tolerada. Até ao dia em que, cansados de lavar os pés com as próprias lágrimas, os dos pés limpos obrigaram alguns dos com pés encardido a chorarem sobre os seus pés. Capturaram-nos, açoitaram-nos violentamente, sem aviso, e vergaram-lhes a face até aos pés dos que os vergastavam, por forma a aproveitar todo o líquido lacrimal derramado. Ao princípio a lavagem dos pés foi o motivo porque supliciavam os outros. Depois, no entanto, o motivo passou a ser outro, o gozo que lhes assomava por supliciarem os outros. Ainda hoje é esse gozo que assegura a existência daqueles com os pés lavados. O Marquês.