2006-01-31
Way down in the hole. Já depois do encerramento das urnas referentes à eleição para senhor presidente da República, entre o apuramento provisório e o apuramento definitivo, o score eleitoral do senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva derrapou de 50,6 para 50,5. Em democracia, a inércia pós-eleitoral, tanto a imediata quanto a diferida, empurra ou puxa tudo para baixo, para o lugar do povo. Inclusive quem vence. Porque a democracia, no que é e como é, democracia, é um regime político autofágico, tipo ouroboros. Nicky Florentino.
. Porque os bonecos, todos os bonecos do mundo, de todos os jornais do mundo,
Vincent, xcvii. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-30
Realismo pagão. Eleum, porque acreditas na realidade. Eledois, acredito na realidade? Eleum, sim, acreditas na realidade, sabes o que é a realidade?, não sabes? Eledois, o que é a realidade... o que é a realidade não sei, apenas sei que muda. Segismundo.
Vincent, xcvi. © Tim Burton. Segismundo.
Sinistrofilia. Autêntico, ele parecia uma personagem de Ballard. Mais do que ninguém, padecia quando as circunstância - o desconhecimento das ocorrências ou a distância, sobretudo - não lhe permitiam gozar a contemplação dos destroços, imaginar in loco o roteiro de dor que lhes estava subjacente. Para obviar a tais circunstâncias, ele ofereceu-se para ser bombeiro voluntário na corporação local. Não pelo propósito de atender ou salvar vidas em risco. Esse motivo jamais lhe pareceu meritório. Mas porque, para além de se deslocar em viatura provida de rotativo e sirene - sinais que anunciam e orientam para a tragédia -, quem presta os primeiros-socorros tende a alcançar o cenário dos acidentes quando o sangue é de derrame fresco e os vagidos das vítimas, como litania de sofridos, ainda se ouvem. O Marquês.
2006-01-29
Clube cidadania, recreio e alegria. O povo é o motivo fundamental e a condição da democracia. Porém, o povo, a síntese da comunidade imaginada em juízo e ordem, não existe. O que existe é um concreto repelente, a multidão. Umas vezes sob a forma de procissão ou fanfarra largada na rua, outras vezes sob a forma de turba camuflada em cerimónias e conversas de salão. Nicky Florentino.
Página do livro das maravilhas, vii. O mundo cresce por dois processos, a expansão e a revelação. A expansão é um crescimento por colonização. A revelação é um crescimento por descoberta. Recentemente foi acrescentado ao catálogo da fauna terráquea reconhecida um peixe ainda mais pequeno do que o Trimmatom nanus, o Pædocypris progenetica, detectado nos pântanos de alcatrão de Sumatra. Vertebrado, tem menos do que oito milímetros de comprimento. Segismundo.
Let it snow. Amanhece e cai neve na cidade pequena. Segismundo.
Vincent, xcv. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-28
A baixa. Todos os cidadãos tendem a ser cidadãos comuns, ordinários. Ou seja, todos os cidadãos têm dificuldade em ser cidadãos. O senhor dr. Manuel Alegre demonstra-o à saciedade. Segundo a edição de hoje do Diário de Notícias, ao abrigo de um atestado médico que lhe prescreve quietude e repouso durante quinze dias, o fulano tem cobertura justificada para esquivar-se aos trabalhos da Assembleia da República. Hoje, porém, reuniu-se com a seita de comadres e compadres que animaram a sua candidatura à honra de senhor presidente da República para, a granel, dissertar sobre o destino cívico a dar ao mais de um milhão de votos que obteve no concurso eleitoral de domingo passado. É isto, portanto, o descanso, a terapêutica dele. Que as melhoras, em particular as do seu pudor, não lhe demorem. Este é o voto acrescentado dos daqui, deste tugúrio. Nicky Florentino.
Toca e foge. Desde que perto do café Central abriu uma loja dos chineses, é frequente andar por ali, no largo, largado, um catraio com feições orientais. Ele é pródigo em onomatopeias. Ao mesmo tempo que pula e corre, grita e berra. Tanto os movimentos quanto os sons, tudo, são sinais do puto, da sua existência. O fenómeno tem piada. Mas depois do segundo grito, quando começam as quedas e os guinchos agudos, tende a tornar-se repetitivo, a desvanecer-se a respectiva graça e a tornar-se incómodo. A ele, um dos que por ali ocasionalmente ciranda, o chinesinho já grita pouco. Apenas um!, dois!, três!, infinito!, com pouca coreografia à mistura. Porque sabe que quando se excede - e para isso não é necessário muito, basta gritar quatro! - tem que correr ao encontro do regaço protector da mãe. Segismundo.
Vincent, xciv. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-27
Às vezes é a vontade de ser como o banqueiro anarquista, i. A morte confirma a vida. Por isso, a morte, tanto quanto a vida, merece protecção jurídica sob a forma de direito fundamental. Não reconhecer o direito à morte, que é um direito natural, é um modo de obrigar à vida. E a vida obrigada, obviamente, não é um direito, não é um recurso de que se disponha livremente, conforme a vontade. Segismundo.
Vincent, xciii. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-26
Antes do equinócio de primavera. Ainda demora o que antecipa a anunciação primaveril, o princípio da coabitação sovaquista, como sugere o Nuno, ou cacrática. Pois antes há um resto de inverno para gozar. A frio. Que é como deve ser. Nicky Florentino.
aO Marquês
À sétima de mais de mil noites. Contou-se assim, conforme paráfrase adiante. O rapaz perseguiu a respectiva consorte, prima sua, e constatou-a com um amante negro possante. Depois, sobre esse, o tal amante, tomado pela fúria de traído, o rapaz desferiu um golpe de espada, porém não suficiente para ser mortal. Soube a adúltera desse acto entre a vingança e o resgate da honra e sobre o seu marido lançou um feitiço. Ficou o desgraçado do umbigo para baixo feito em mármore, preservando do umbigo para cima a carne e a forma que tinha. Sem mobilidade, o rapaz tornou-se vítima. Todos os dias, por sugestão do amante sobrevivente, a viciosa despia-lhe a camisa, assestava-lhe cem vezes o látego sobre as costas e tornava a vesti-lo. Foi este martirizado rapaz que, ao rei que pretendia deslindar o mistério do lago com peixes de quatro cores, amarelo, azul, branco e vermelho, disse isto, “- Sabe, ó senhor, que a história dos peixes é uma coisa tão extraordinária que, se se escrevesse com uma agulha no ângulo interior do olho, a fim de que todo o mundo a visse, seria uma grande lição para o observador cuidadoso”. Segismundo.
Vincent, xcii. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-25
Porque há apenas uma pátria primordial. É provável que o senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva não venha a ser mais motivo de angústia do que o senhor Co Adriaanse. Nicky Florentino.
Página do livro dos excursos, viii. Se há um princípio em tudo o que acaba, por que é que, através da ressurreição, deus apenas reciclou um filho? Segismundo.
Vincent, xci. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-24
A minha é maior do que a tua. A discussão sobre a dimensão dos resultados eleitorais obtidos pelos diferentes candidatos, se a vitória de x foi monumental ou tangencial, se a derrota de y foi insignificante ou humilhante, é uma espécie de disputa entre putos sobre a envergadura do respectivo pirilau. No futebol há muito que este tipo de dilemas foi ultrapassado. Para o que conta, uma vitória, qualquer que seja a vantagem que traduza e qualquer que seja o concorrente batido, vale três pontos. Nem mais nem menos. A mesma lógica merece ser aplicada à eleição presidencial. Quem ganhou, ganhou. Quem perdeu, perdeu. É irrelevante por quanto. Porque para a próxima há mais. E, em política, nenhum tamanho é eterno. Nicky Florentino.
Sem querer. Parece que o senhor eng.º José Pinto de Sousa destilou ira por ninguém o ter alertado para a inoportunidade da sua intervenção teelvisiva na noite do passado domingo. Esta pátria é um ror de equívocos e vítimas. Nicky Florentino.
Vincent, xc. © Tim Burton. Segismundo.
Sultans of swing. Nos bailes, os rapazes nunca perguntaram à Jacinta a menina dança? Para além de ser feia, a moça não primava pelo arranjo e, embora fosse asseada, tinha fama de viciosa, não seguro o proveito. Sempre preterida, nunca convidada para dançar, o seu corpo jamais experimentou a vibração autêntica do swing. Também por isso, Jacinta não conheceu o sacramento matrimonial e dedicou-se à pedicure. Ao tocar os pés das mulheres que lhe solicitavam os préstimos, Jacinta muitas vezes imaginou-se a dançar, arrebatada pelos braços de um qualquer dançarino. Em casa, sozinha, simulava passos e compassos de dança, guardada na esperança de um dia um rapaz lhe estender a mão, puxá-la para o centro do arraial e entreter-se com ela em voltas e volteios. Por demorar esse dia, Jacinta decidiu proporcionar a si mais oportunidades, através da diminuição da concorrência. Durante algum tempo limitou-se a cortar, cerce, pés, fosse o direito, fosse o esquerdo, às raparigas solteiras. Mais tarde, com a sensibilidade ecológica mais desperta, Jacinta começou a aproveitar esses pés. E, envolvida por melodias e ritmos de Benny Carter, treinando passos de dança junto do fogão, esmerou-se em mais do que foot massage, tratamento de calos ou limagem e pintura de unhas. Apurou-se na confecção de pezinhos de coentrada. Os rapazes, porém, como sultões, continuaram a não convidá-la para dançar. Preferiram sempre outras. O Marquês.
2006-01-23
Porque há sempre alguém que diz não e tal e siga para bingo. No caso do senhor dr. Manuel Alegre, o que é curioso, embora não surpreendente, é a conversa sobre a cidadania. A candidatura foi pequena. A votação lograda não foi maior. Apenas aconteceu balofa. Fossem as condições ecológicas outras - em particular no que concerne à oferta política no boletim de voto - e muito provavelmente não haveria motivo para perorar sobre o mais de um milhão de cruzes desenhadas diante do nome do putativo candidato da cidadania, como se os outros fossem candidatos do jardim zoológico ou do pepino feito pickle. Tal contingente de votos é sobretudo sintoma. Não tanto consequência. Ou, no que tem de consequente, saída política. O senhor dr. Manuel Alegre foi apenas o acidente que fortuitamente abrigou tal indício. Para ser mais do que o que foi era necessário que o caso tivesse maior densidade orgânica. Mas a junta que permitiu a reunião de mais de um milhão de votos sob a sua graça parece demasiado difusa e frouxa para resistir. Os
Será que será. Usualmente as projecções fundadas no resultado de sondagens eleitorais não induzem mais em erro do que os concorrentes a um determinado pódio político. Nicky Florentino.
Encavacar. Durante a noite de ontem, muitos acusaram a manobra, presumivelmente capciosa, do senhor eng.º José Pinto de Sousa, por ter começado a falar para a teelvisão quando o senhor dr. Manuel Alegre ainda levava o discurso pouco arrancado. De pouco adianta discutir elegâncias ou simpatias neste tipo de circunstância. A fauna envolvida é sobejamente conhecida. E também não surpreende o desvio do foco teelvisivo de um fulano para outro, porquanto é estimável o comportamento de padrão pavloviano de quem está na régie neste tipo de ocasião. Relevante, portanto, foi ouvir o tal senhor eng.º José Pinto de Sousa dizer «cooperação institucional». Adesão mais célere ao conceito não poderia haver. É o que se chama encavacar. Nicky Florentino.
De Belém. Há pastéis que estão tanto aquém quanto para além do que aconteceu ontem. É sossego saber isso. Saber que há instituições incólumes às vicissitudes e labilidades do tempo pequeno. Nicky Florentino.
Via crucis. Não é por acaso que, no jogo chamado democracia, o voto expresso obriga uma cruz. Nicky Florentino.
Topfive, pride and prejudice. De entre os trezentoseoito feudos ou domínios paroquiais chamados municípios, ele tem o direito de riscar o boletim prometido à urna naquele que é o quarto que, em termos relativos, mais votos penhorou ao senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva. É como estar em casa. E, home, sweet home, pertencer à seita the devil’s rejects. Segismundo.
Página do livro das sentenças, xxix. O tempo tudo cansa e adormece. Inclusive os relógios. Segismundo.
Vincent, lxxxix. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-22
That’s all folks. Uma das maravilhas do jogo democrático é que, qualquer que seja a aposta no boletim de voto, qualquer que seja o resultado da lotaria eleitoral, resulta sempre um prémio, o mesmo prémio, para todos. Para os que acertaram na resposta, para os que erraram e até para os que não jogaram. Nenhum outro jogo é assim. Nicky Florentino.
Calamity Jane, ou o caso Mariani. Que o senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva venha a ser o próximo senhor presidente da República é facto que, por o fulano ter sido sufragado, se tolera. O jogo é assim mesmo. Erro e paciência. Calamidade, degraça, é a senhora primeira-dama com aspecto de bisca de paus que, à socapa, decorre desse facto tolerável. Nicky Florentino.
A
Da ansarinha-malhada. Veremos se a cooperação institucional prometida pelo futuro hóspede do palácio de Belém será ou não será cicuta no palácio de São Bento. Nicky Florentino.
E onde é que estão os elefantes para engolir? Foi anunciado nas teelvisões que há um cartaginês a caminho de Belém. Nicky Florentino.
Vincent, lxxxviii. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-21
O
Agenda. Hoje, Amiais de Baixo, Lareira do Casal, trezeetrinta, pernil de porco assado no forno, primeiro, e magusto com bacalhau assado, depois. O resto do mundo é fome. Segismundo.
Vincent, lxxxvii. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-20
A natureza nunca perfeita, ou um caso sempre a perder. De entre a meia dúzia de senhores candidatos à honra de senhor presidente da República, apenas um tange a condição de senhor candidato quase perfeito. De uma vez só, esse, livra-nos da demais concorrência, toda a mão canhota e as desgraçadas hipóteses representadas por cada um dos seus dedos - o senhor Prof. Doutor António Garcia Pereira incluído, obviamente. E é um senhor candidato quase perfeito, não um senhor candidato perfeito, porque tem o raio de um senão. Um senão único, porém um senão. Ao livrar-nos dos outros, os do pentagrama esquerdo, como o cordeiro de deus redime os pecados do mundo, não nos livra dele mesmo. Lograsse ele tal dom politicamente higiénico e seria o único prodígio
Voto obrigatório. No que concerne à tão propalada e breve contenda eleitoral presidencial, um dos senhores candidatos incomoda mais do que qualquer um dos outros. O que menos perturba é o facto de, pelas estimativas publicitadas, ele ser a criatura mais provável como futuro senhor presidente da República, ainda que com vantagem tangencial sobre um limiar fictício estabelecido para aceder a tal honra - o famigerado mais do que cinquenta porcento. A quem lhe suportou um consulado governamental de dez anos e sobreviveu não assusta conseguir paciência para mais dois lustros, seja isso manifestamente desagradável, para uns, ou motivo grato e de satisfação, para outros. Incómodo, na circunstância, isso sim, é não ser recomendável nem a abstenção nem o voto imaculado, por ser isso proveito exclusivo para o tal fulano e, por conseguinte, aumentar a probabilidade da sua vitória eleitoral. Do que resulta que, seja-se pro ou contra o senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva, o voto é necessário - modo disfarçado de o afirmar compulsivo. Por omissão ou acção, todas as almas recenseadas para fins eleitorais, na sua individualidade, contam e serão cúmplices do resultado que vier a ser apurado e anunciado na noite do próximo domingo. A culpa inalienável e diluída, condição da (ir)responsabilidade expressa sob a forma de abstenção ou voto, é uma das poucas constantes políticas no jogo a que se chama democracia. Na prática, ninguém é culpado. Mas há sempre alguém que aproveita. Está mal. E ainda bem. Pois pior seria se, com a alienada inocência, ninguém ganhasse. O desperdício nunca foi acto bom ou bonito, concerteza. Mas ser-se obrigado a votar com cruz, para além de tácita e inapelavelmente vincular quem vota a um resultado eleitoral - qualquer que ele seja -, é uma violência. Se não é mesmo uma ofensa clamorosa aos direitos, liberdades e garantias que se julga ter. É isso o que mais chateia. E, claro, dana. Nicky Florentino.
O engano de Darwin. A democracia, enquanto arranjo civilizacional, é um dos refúgios, um dos casulos de acolhimento dos fracos. Alcança-se este juízo quando se sabe que nos confins da Melanésia há quem, para atestar a respectiva virilidade, salta de uma torre composta por troncos, com trinta metros de altura, contra o chão de terra, apenas com a segurança de duas lianas atadas aos respectivos tornozelos. Outros, com o mesmo propósito, talham frágeis pirogas no corpo abatido de uma árvore, com as quais se lançam ao mar, para caçar um tubarão. Ser homem, ostentar uma condição reconhecida de masculinidade é cumprir exactamente tais audácias. Não andar nessa empreitada mansa de rogar votos, típica de quem ao pequeno almoço come um bolo-de-arroz e bebe um galão ou, como prova do respectivo denodo, ocasionalmente ousa comer um croissant com fiambre e beber um néctar de pêssego. Nicky Florentino.
O Estado plateau. A democracia não existe. O que existe é um palco de enganos. Entre outros motivos, porque o escrutínio político dos mandantes maiores do império dos sentados é eleitoral - um concurso, portanto - e feito quando as criaturas candidatas, como uma espécie de sempre-em-pé, quase só se exercitam e expõem em stand up para a teelvisão. Parece que tem que ser assim para gáudio das plateias imediata ou diferida, os gentios em volta ou os gentios a mirar a teelvisão. Daí que audiência seja o rótulo elegante da multidão. E, claro, tão popular quanto ilusório. Nicky Florentino.
Wissenschaft als Beruf. Ele estava no lugar certo, à hora precisa, com as mangas arregaçadas, preparado para continuar uma das suas sequências de trabalho. Entretanto, chegou alguém, um colega. Disputou-lhe o espaço e o tempo. Por isso, ali e no instante, a missão também. Ele decidiu não oferecer resistência. No trabalho, admitiu naquela circunstância, há também espaço e tempo para os outros. Deu uma palmada no ombro do concorrente ocasional e equívoco. Desejou-lhe boa aula. Saiu. E aproveitou para ir discutir o caso com o patrão argentino. À sexta-feira à noite, é isto, não estar cativo de um ofício urgente, a alegria no trabalho. Segismundo.
Orgia para estes dias do fim. William Blake (sob a chancela da Antígona), Κωνσταντίνος Καβάφης (sob a chancela da Relógio d'Água Editores), Ezra Pound (sob a chancela da Assírio & Alvim) e Giambattista Vico (sob a chancela da Fundação Calouste Gulbenkian). O mundo todo quase nas coisas, impresso. Segismundo.
A vertigem do terceiro tempo. Quase só quem é estúpido entende a projecção fundada no resultado de uma sondagem como dispensa do futuro. Porque o futuro necessariamente acontecerá. Embora não necessariamente conforme a projecção acontecida. Aliás, é por isso que o terceiro tempo é simultaneamente fatal e mistério. Gregório R.
Vincent, lxxxvi. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-19
Lord of the
Piranha de água de rosas. Se senhor presidente da República, o senhor dr. Manuel Alegre pretende ser o vigilante da decência da democracia pátria. Falho propósito, o do fulano. Pois a democracia, como acontece, deve rimar tanto com indecoro quanto com lota. Aliás, a democracia, no que é, é justamente e sobretudo isso. Pelo que de trambelho, dado que a emenda surge pior do que o soneto, é deixá-la assim continuar a ser. Nicky Florentino.
O optimismo de Hobbes. Parte da doutrina de Thomas Hobbes teve como catalisador uma célebre frase de Plauto, homo homini lupus. Argumentou Hobbes que, se o homenzinho é uma besta, parece poder aplacar-se essa bestialidade demasiado contingente através da criação de um besta superior e regular. O leviatão, portanto, foi a solução proposta para o problema. Acontece que para se chegar ao leviatão, a grande besta capaz de arbitrar os litígios entre as pequenas bestas e de as proteger das grandes bestas com nome estrangeiro, a multidão original, o colégio dos homenzinhos, teria de ordenar-se voluntariamente e em juízo. Ao produto dessa transmutação da multidão chamou Hobbes povo. Porém, essa transmutação nunca foi mais do que uma hipótese de boa vontade. O que significa que, não obstante a alienação democrática, ainda hoje é a multidão quem mais (des)ordena. Nicky Florentino.
Custos de capitalidade. Estacionar à lavrador, fulgor provinciano, é um gozo improvável na cidade grande. Segismundo.
Vincent, lxxxv. © Tim Burton. Segismundo.
Josefa come-olhos. Josefa cegou por ocasião do seu sétimo aniversário. Um acidente, nunca devidamente esclarecido pelos investigadores, remeteu-a para uma câmara de trevas permanentes, qualquer que fosse a luz que fulgisse fora dela. De Josefa fugiu a visão, mas não o espírito. Habitava-a um universo de memórias infantis, como se fosse um álbum de imagens, slides dos seus jogos e das suas brincadeiras de criança, e iluminada por essa inocência foi crescendo. Dela quase nada se sabe. O mesmo acidente que lhe levou a visão levou-lhe ainda a parentela conhecida. Em consequência, Josefa foi amparada e acolhida por uma mulher estranha, abundante em virtude e temência ao da cruz, assim como ao pai e à mãe desse. Foi essa mulher que a criou para mulher, enxotando-lhe os demónios que seus olhos apagados às vezes deixavam entrar, para depois, enxotados, saírem em lágrimas. Porém, pelo seu vigésimo primeiro aniversário, Josefa tornou a ficar só no mundo. A tal mulher expirou. Foi por esses entretantos que começou a faltar-lhe a memória do que era isso os olhos. Tornou-se isso obsessão sua. E, então, principiaram as vítimas. Ela atraía alguém a um lugar ermo, sem vizinhança. Invocando a sua cegueira, era-lhe fácil tal empreitada. Dizia que gostava que a levassem a sítios afastados, para poder sentir, ouvir, cheirar, tocar, provar, a paisagem. Mas não era isso que ela pretendia. Chegada ao recôndito destino, atacava com inclemência quem a acompanhava. Procurava-lhe os olhos, ao mesmo tempo que imobilizava a vítima. Sobre eles, os olhos da vítima, precipitava as mãos. Josefa era cega, não surda. Ouvia os gritos lacinantes e de aflição estrepitamente soprados pela criatura martirizada. Já gozava bastante, ela, ao escutar tais gritos. Mas, depois, resplandescia de modo superlativo ao sentir a ruptura do nervo óptico dos olhos que capturava. Uma vez na sua mão, não demorava a oferecê-los à boca e a iniciar a respectiva mastigação. Mastigava-os crus. Como se fossem uma pastilha elástica. Apenas numa circunstância tentou esse ingrediente numa sopa. Mas foi caso único. Alimentos caldosos nunca foram mania ou da predilecção de Josefa. O Marquês.
2006-01-18
A improbabilidade do regime enunciado. Para além de não existir, a democracia é improvável. Em Portugal mais ainda. Conferem crédito a esta tese algumas observações. Enunciam-se seguidamente duas, em avulso. Um ror de meses - quase seis - após a votação, ficou a saber-se que, afinal, quem tinha vencido a eleição para a presidência do Departamento Nacional das Mulheres Socialistas não tinha sido a senhora dr.ª Sónia Fertuzinhos, mas a concorrente, a senhora dr.ª Maria Manuela Augusto. Parecido é o que agora se ficou a saber em relação às últimas eleições autárquicas. Segundo acusou a Comissão Nacional de Eleições - passados mais de três meses sobre a realização dos aludidos sufrágios -, muitos foram os erros de atribuição de mandatos para os órgãos da administração local. O que quer que isto seja, como é óbvio, democracia é que não é. Ainda assim, para sossego, finge-se que é. Pelo que, sobre o chão pátrio, são sobretudo a ilusão e o despudor que sustentam a plausibilidade do regime. Nicky Florentino.
A casa de pasto chamada democracia. Durante uma campanha eleitoral, o que é que leva os candidatos a qualquer honra pública a visitarem mercados e lotas? Subliminarmente isso serve um propósito particular: a celebração da novidade e do peixe. A consequência é que, percebendo isso, os gentios, que sabiamente têm predilecção pela posta mirandesa, em detrimento do grelo de nabo ou do chicharro, hesitam. E como não há imagens de candidatos a frequentarem talhos ou entre vacas barrosãs - para enganar, na imagem, também servem vacas de raça charolesa ou limousine - tendem a desmobilizar-se. Como surge óbvio, ganha a abstenção. Uma das hipóteses que também consta do cardápio para o próximo domingo, dia vinteedois. Nicky Florentino.
Espectros da mesma fraqueza. Nas páginas da Odisseia - ou da Ilíada ou da Eneida -, por exemplo, encontram-se deuses. Nas páginas da Bíblia encontra-se deus. Nas páginas d’As Mil e Uma Noites encontram-se génios. São formas diferentes de encontro com o mesmo fantasma, o mesmo demónio. A impotência e a heroicidade. Segismundo.
Vincent, lxxxiv. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-17
Sic transit gloria mundi. Há um candidato a senhor presidente da República que para se inteirar da situação de uma empresa de capitais públicos telefonou a um senhor ministro. É o expediente paradigmático de quem é laico, republicano, socialista e aristocrata no circo. O senhor ministro atendeu e respondeu. Não fez mais do que lhe competia. Porque, sem favor, existe para servir. Nicky Florentino.
Uma questão de confiança. Qualquer criatura tem direito às suas bizarrias no recato doméstico. Mas, sem temor, pode confiar-se a honra de senhor presidente da República a quem, como o senhor dr. Mário Soares, antes de se remeter ao leito nocturno e aconchegar-se entre os lençóis e a almofada, sorve por gosto um copo de leite quente temperado com uma pequena porção de bourbon? O que é que é feito de quem trata o Jack Daniel’s por tu e repete? Nicky Florentino.
Homo ludens e caso democrático. A democracia, no que é, mais do que situação ou estado, é um jogo, um dispositivo simultâneo de economia, glória e diversão. É illusio, portanto. Nicky Florentino.
Já não há ferro e fogo como antigamente. Não por acaso Foucault inverteu uma célebre frase de von Clausewitz e sustentou que “a política é a continuação da guerra por outro meio”. Percebe-se isso, por exemplo, quando se constata que as actuais campanhas eleitorais se assemelham às batalhas campais do tempo das hordas napoleónicas. Porém, o que outrora era metralha e baioneta hoje é beijos e abraços efusivos. Os estandartes, esses, continuam a ser elementos simbólicos importantes na coreografia em campo, sempre a exigir agitação e vento. E as palavras de ordem e os comícios, como antes os gritos de guerra e as exortações, complementam a paisagem. Isto tudo, claro, acontece agora mais em manso e em limpo. Sem a autenticidade que o poder antes tinha, visível no sangue dos mortos e percebido na essência de pólvora aspergida sobre os derrotados. É por isso que na forma política hodierna a que se chama democracia há sobreviventes em excesso. E zombies a cheirar a sabonete. Nicky Florentino.
Agenda. Chamar cerimónia à transladação de um cadáver já é morbidez de sobejo. Transmitir teelvisivamente essa transladação, então, mesmo que o cadáver seja da vidente mais protegida em vida pelo beneplácito mariano da Cova de Iria, não alivia o juízo. Seja como for, se é espectaculo, sejamos, pois, espectadores. Em última instância, para vigiar o cortejo tétrico entre o convento do Carmelo em Coimbra e o santuário de Fátima e para acompanhar as manobras e os volteios da carcaça da malograda cabreira temente ao imaculado coração da senhora mãe de Jesus e tal que pairou sobre uma azinheira. Acontecerá no terceiro domingo de Fevereiro. Numa teelvisão perto de si. O carnaval continuará no fim-de-semana seguinte. Mas em registo pagão, com carne exposta e vibrato. Que é como, para qualquer bom fiel - seja ou não assumido em confissão -, é mais bonito. Segismundo.
Vincent, lxxxiii. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-16
Quebra-cabeças. Muitos problemas políticos existem à revelia da consciência que deles se possa ter. Acontece o mesmo com as soluções. Casos há e não poucos em que ainda bem que assim é, pois há problemas que não são para resolver, assim como há soluções que não são para utilizar. Mas, depois, há a considerar ainda a indómita imaginação da fauna senhorial que sofistica tanto problemas quanto soluções. Tipo golpe de Estado constitucional. Ou senhor presidente de todas as portuguesas e estrangeiras e de todos portugueses e estrangeiros a residir em Portugal. Como é óbvio, não há manual de ciência política ou de qualquer outra inutilidade disciplinar próxima que empreste orientação sobre tais tópicos. Pois acontece que são ideias frescas. Ainda demasiado cerebrais, portanto. Nicky Florentino.
A
La famiglia. Como deus é a família. É a ideia que lhe confere existência. E isso dispensa substância. Mas às vezes, por qualquer contingência, parece que a família existe. Um episódio ilustrou-lhe isto. Há um ror de tempo que ele não se dignava a almoçar com a família. A vida é assim mesmo. Hoje, por sortilégio, desde cedo, familiares diversos - da sobrinha mais nova ao irmão mais velho -, através de vários expedientes - todos pertubadores -, convocaram-no para o almoço. Mais por descanso e incompatibilidade de feitio do que por desencontro de agenda ele evitou o dito almoço. Não tardaram as censuras. Apesar do incómodo ao respectivo sono, ele nada retorquiu. Limitou-se a moer em silêncio a sentença. E a dúvida. Se o desejavam tanto como comensal, porque não o convocaram para uma refeição a horas de civilização?, o jantar, por exemplo. Provavelmente porque ele já não lhes é assim tão familiar. Ainda assim, porque nas boas famílias a ausência de um familiar não é estorvo, a festa fez-se à mesma. E alguém
Aos trintaequatro é tudo como antes ou melhor, xxv. Mas passa. Segismundo.
Vincent, lxxxii. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-15
Pulo do lobo. Ao senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva vêm de tempos antigos a mania e o jeito de saltar barreiras. Compreende-se, pois, que um dia destes se tenha posto a cantar Grândola, vila morena. Nicky Florentino.
Call center. Por algum motivo a expressão «envelope nove» não é sinónimo de jackpot. Segismundo.
Vincent, lxxxi. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-14
Campa
Sensilusionismo. Quando se fica temporariamente cativo num cerco translúcido, não são os vultos, os espectros - equivalentes às sombras da célebre alegoria platónica - que impressionam ou reportam realidade. Nessa circunstância, o vínculo mais imediato ao mundo é a sensação das vozes e da vibração do movimento dos corpos. Pelo que o que sobeja silencioso, se não encontrado com a memória, sente-se inexistente, ausente ou mistério. Segismundo.
Vincent, lxxx. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-13
Sexta-feira treze. Intensificam-se os indícios de que, caso venha a ser alcandorado na honra de senhor presidente da República, o senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva deixar-se-á embalar pela gula da sua boa vontade. Pelo manifesto, o fulano deseja ardentemente não apenas o bem da pátria mas também ser ele o instrumento, a mão do resgate desse bem. Esta abençoada mania salvífica não é bom augúrio. Não é bom augúrio por princípio e agrava-se na circunstância. Porque também encharcado dessa mania e eleitoralmente mandatado ao abrigo dela existe já o senhor eng.º José Pinto de Sousa. Era suposto que esta eventualidade fosse acautelada pelo trambelho e que nisso das coisas do Estado houvesse uma distribuição inequívoca das missões emprestadas a cada criatura. Ou, no mínimo, que houvesse uma regra que permitisse arbitrar as contingências deste tipo. A regra da precedência, por exemplo. Quem chega primeiro amanha a leira, quem chega depois espeta a cana para a flor. Pois, se assim não for, é possível e provável a bronca. Em Portugal mais ainda. O que não é necessariamente mau. Entre outros motivos porque, aleluia e louvada república!, não são poucos os que se entretêm alacremente com o folclore da desdita da pátria. E alguns até jogam o seu jogo. O
Bullet the blue sky. As disputas do tipo «a minha ética é mais ética do que a tua» são tendencialmente patéticas. E lastro tanto para o populismo quanto para o lodo moralista, quando não são já expressões suas. Num concerto liberal perfeito, a ordem resultaria da composição da responsabilidade de cada um dos sujeitos, todos recenseados em juízo. Mas isso não é panorama deste mundo. Portanto, por aqui, não adianta nutrir ilusões ou lirismos. A pólvora já foi inventada. Pelo que há que dar-lhe uso. Embora não em fogo de artifício. Nicky Florentino.
Porque a liberdade é todos os dias. De ordinário, meter o bedelho é um acto lhadaputa. Quando não é excepção devidamente justificada - mesmo que abrigada por mandado -, é sempre. E não é um acto menos ou mais lhadaputa porque afecta o senhor xis ou o senhor ípsilon, senhores muito importantes e tal, emprestados a honras de Estado ou assíduos na teelvisão. É por isso que, sobre os chãos desta pátria, quem se esforça para ser liberal old fashion tende a exasperar todos os dias. E, sob a efervescência das fortuitas denúncias pelos media e das manifestações de indignação e preocupação dos senhores ocasionalmente tocados no osso, tende também a reforçar a assunção cínica e irónica. É um modo de, quando há apenas duas outras hipóteses de expiação da desventura - o suicídio e a emigração -, hic et nunc,
Vincent, lxxix. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-12
O b-side, ii. Tanto a boa moeda quanto a má moeda têm dois lados, a face e a coroa. Não é isso, portanto, característica suficiente para distinguir uma da outra. No caso do senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva também não ajuda o respectivo valor fiduciário, qualquer que seja o seu valor facial. Porque, por aí, continua sem saber-se se o fulano é boa ou má moeda. Como é óbvio, também nada acrescenta à decifração do mistério o que quer que o senhor dr. Pedro Santana Lopes ofereça sobre o assunto. Nicky Florentino.
Vertigem sound + vision. Durante a cegueira, antes do regresso, uma das saudades é a experiência plena do cinema. Na circunstância, mesmo as legendas são perda. Segismundo.
Vincent, lxxviii. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-11
E vice-versa. O José contestou os de fraca paciência em relação à actual campanha eleitoral, identificou motivos de interesse no que concerne à eleição subjacente e até suscitou incógnitas inéditas. Uma delas, por exemplo, está associada à interrogação: qual será a reacção do senhor primeiro-ministro a “um [senhor] presidente [da República] com forte legitimidade política, em particular se for eleito à primeira volta”? Sim, qual? Esta incógnita, como afirmada pelo José, tem piada. E tem piada porque, conforme expressa, codifica o senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva, em senhor presidente da República, como variável independente e o senhor eng.º José Pinto de Sousa, enquanto senhor primeiro-ministro, como variável dependente. A luminária, o teso, firme e hirto, aquele, e o desgraçado, o mole, circunstancial e dúctil, este. É no mínimo curioso que o José não se tenha interrogado também, em razão do interesse da eleição presidencial prometida para o próximo dia vinteedois, como é que o próximo senhor presidente da República, mesmo que insuflado de um suplemento circunstancial de legitimidade política, conviverá como o senhor primeiro-ministro, cabecilha da seita a quem compete governar - reitere-se, a quem compete governar - a pátria. O que é que isso interessa?, não é? Os indícios permitem estimar que o senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva terá dificuldade em conformar os seus actos ao hábito institucional que provavelmente irá envergar. Pelo que neste momento o que surge como estimulante e interessante não é prospectivar as manobras que o próximo senhor presidente da República irá ensaiar com o fito de suscitar o bom governo da pátria, mas, ao invés, perceber as artes pelas quais o senhor primeiro-ministro conseguirá remeter o chefe de Estado, em caso de desmando coreográfico, à sua condição convencional e ornamental - leia-se: constitucional. Porque a garraida circense, essa, desgraça, parece que é certa e para continuar. Até ao fim. Da paciência. Nicky Florentino.
A vergonha republicana. Ética cada um tem a sua. A lei é para todos e por igual. É por isso que, em abstracto e como fundamento republicano, a lei, geral e universal, é preferível à ética, particular e singular. Que, depois, a lei não seja suficiente para garantir a responsabilidade dos sujeitos é mau soneto que não se remedeia com a ética, dispositivo demasiado doméstico, de cada um e consoante a respectiva (in)consciência. Em termos públicos - porque pode estorvar-se um mal, não estabelecer-se o bem -, mais operativo do que ética é a vergonha, entendida como um temor soft, que afecta a honra, título e valor pessoais cotados pela respectiva tribo. Pelo que cada vez mais a civilização e a república, no que podem ser, definem-se pela atenção à linha do opróbio, da infâmia. Não pela atenção à linha da virtude ou da ética. Que, em rigor, ninguém sabe bem o que é. Nicky Florentino.
O b-side, i. Os tempos tendem a ter determinadas sensibilidades associadas a si. Antes, na altura do long-play, sabia-se que para além do lado á havia o lado bê. Saber isso, a existência de dois lados, era um paradigma. Em momento posterior, o da vigência do compact disc, esse paradigma foi substituído. Actualmente, sabe-se a existência de um lado. O outro lado, embora também exista, é apenas rotular e, por isso, menos significativo. Em parte é por isto que agora é difícil saber quem é autenticamente o senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva, nos seus dois lados. Não é que isso seja um crédito cívico extraordinário ou condição vital. Mas, perante um concurso eleitoral em que o fulano é um dos candidatos à honra de senhor presidente da República, convém não iludir que a sua efígie suscita alguma curiosidade. Curiosidade que tende a desvanecer-se quando é percebida a superfície dramatúrgica que ele representa. Porém, enquanto se olha para a personagem, tende a esquecer-se o actor. Percebe-se que há ainda outro lado, percebe-se que o rabo do gato está de fora, percebe-se o focinho do lobo sob a pele de cordeiro, percebe-se o actor sur scènes, percebe-se o fingidor quando a criatura chama “outro partido” ao CDS/PP como se tal partido político não apoiasse a sua candidatura de modo consentido por si. Na circunstância, nenhum outro cabonito se atreveria a tal improviso sobre o scrip político da realidade. Do que resulta que, se o lado á é pop, o lado bê do fulano é pop buffa. Nicky Florentino.
Vincent, lxxvii. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-10
Os leitores desconhecidos do Abrupto. O José aludiu a uma história de Xerxes, que envolvia mar e chicote. O João avisou que a história não terá sido como o José a contou, invocou Heródoto e chamou-lhe boato. O José concedeu, admitiu o deslize, citou Montaigne e ao João e a outros - que os danados, por manifesta ignorância, desconhecem - chamou-lhes “os meus correctores clássicos”. Sem link. Provavelmente porque é assim que é bonito. Segismundo.
Money makes the world go (a)round. Ao longo dos anos muitas foram as vezes em que o Américo lhe rogou um cigarrito. Apesar da insistência, nunca teve sorte o Américo. Até que um dia alterou a moda, deixando de pedir um cigarrito para passar a pedir uma moedita. A sorte do Américo mudou. Agora, com frequência, o Américo acerca-se dele e sabe certo que, embora ele não fume, habitualmente transporta moedas no bolso. A última vez que o Américo lhe perguntou tens aí uma moedita?, hoje, ele deu-lhe duas moedas, uma de dois euros, outra de dez cêntimos. Com a moeda de dois euros o Américo comprou um bilhete de lotaria instantânea. Com a moeda de dez cêntimos raspou onde era para raspar. Percebendo que ganhara cinquenta euros, o Américo inverteu o ritual. Dispensou o sussurro de rogo, a proximidade também, e, em alta voz, à distância, perguntou, queres tomar alguma coisita?, hoje pago eu. Segismundo.
Vincent, lxxvi. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-09
Exercício de prospectiva. Pelas tendências observadas, no enredo da circustância, o senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva surge como uma personagem fatídica. Fatídica para os gentios pátrios, alacremente embalados em imaginação e esperança. Fatídica para os demais concorrentes à honra de senhor presidente da República, cada vez mais figurantes ou meros adereços animados da campanha eleitoral. E, convém não iludir, fatídica para ele mesmo, por, se for, ir para Belém como rei mago e, constitucionalmente, não poder ser mais do que a fava do bolo-rei. É isto o que nenhuma sondagem eleitoral estima. Mas que provavelmente, quase destino, irá acontecer. Nicky Florentino.
Vincent, lxxv. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-08
Poética de viandante. Se o transeunte olha, é provável que decote e pacote sejam elementos de uma rima simultaneamente emparelhada e interpolada. Segismundo.
Vincent, lxxiv. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-07
O bailinho numa das arenas do circo. O senhor dr. Alberto João Jardim tergiversou e não se deu ao respeito. O senhor Silva, também senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva, amouchou e consentiu o folclore da trégua fingida. Encontraram-se ambos num dos quintais insulares da pátria e, para os demais curiosos, encenaram relevarem-se em razão do insuspeito e superlativo interesse da grei. O discurso de abjuração de um e outro, porém, foi véu curto para camuflar as respectivas conveniências. Pelo que, se não se levam a sério, tanto o senhor dr. Alberto João Jardim quanto o senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva merecem a condição de comediante que se lhes percebe dentro desta tenda de circo chamada Portugal. Nicky Florentino.
Vincent, lxxiii. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-06
A pátria vista a partir de uma marquise da travessa do Possolo. Quando alguém entende e afirma que, perante o horizonte de tempo anunciado e respectiva agenda, a eleição do senhor presidente da República é o último acontecimento que permite insuflar esperança aos gentios pátrios é manifesto que esse alguém não percebe puto de futebol e aufere um ror de vezes o salário mínimo nacional. Nicky Florentino.
Vincent, lxxii. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-05
Philosophie der symbolischen Formen. A reverência beata a símbolos, quaisquer que sejam e qualquer que seja a seita que os reclama, não é sintoma de bom juízo. Daí que o consentimento da iconoclastia seja um dos poucos deveres públicos recomendáveis. Entre outros motivos porque descomprime e disponibiliza para a catarse. Pois quando alguém vigia assanhadamente os símbolos - e classifica como heréticos todos os respectivos usos fora do âmbito protocolar - ao mesmo tempo que revela negligenciar os motivos fundamentais desses símbolos, sacra e santa paciência, a vontade é sugerir aos milicianos de tal vigilância que vão para o caralho. Em prol do consentimento iconoclasta, no entanto, há que refrear essa vontade. Porque o caralho, enquanto destino sugerido, é apenas outro símbolo. Segismundo.
Da vidência. Quando alguém regressa da cegueira, quando os seus olhos tornam a perscrutar para além do apagamento ou da translucidez, a estranheza não é a revelação das coisas, a sua iluminação e a sua definição, mas o desaparecimento da memória que se teve dessas mesmas coisas durante o intervalo em que os olhos foram como um diafragma fechado ou baços. Então, sem a evidência, não alcançadas, como se sentiam, as coisas pareciam mais nítidas. E pareciam sempre novas, de ontem. A ele aconteceu este desvio à célebre alegoria platónica. Foi ontem que os seus olhos voltaram a resgatar o respectivo sentido. Fechando-se. Para ver outra vez. Segismundo.
Vincent, lxxi. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-04
Manifesto contra ilusão. Que não subsistam ilusões! Por mais boa vontade manifestada pelos senhores candidatos à honra de senhor chefe de Estado e por mais lato que enunciem o espectro das suas estimadas feitorias, no próximo dia vinteedois, em rigor, votar-se-á para eleger o senhor presidente de uma Junta de Freguesia chamada Portugal. Quem venha a estar na dita figura pode chatear com solenidades protocolares, espernear coreografias ousadas, sugerir isto, cortar fitas, outorgar comendas, sugerir aquilo, proferir discursos soporíferos, demitir o Governo e dissolver o parlamento - as duas expressões plausíveis de qualquer magistratura de influência ou de qualquer cooperação estratégica entre órgãos de soberania. Pode também comer fartamente bolo-rei, trepar coqueiros, montar tartarugas, usar turbante cor-de-laranja sobre elefantes, ter saudades do tempo de quando pela telefonia se chegava de Argel, declamar enfaticamente poemas e citar os cânones dos literatos, não temer as mãos encardidas de quem trabalha a terra, abraçar (apesar da ferrugem e da limalha) um serralheiro mecânico, julgar que os olhos da respectiva filha lhe conferem particular autoridade para falar sobre o aborto, participar em paradas fandangas em prol de um mundo melhor, velejar e, em chi-coração, apertar os costados do grão timoneiro e camarada senhor dr. Arnaldo Matos. Pode tudo isto, mais e ainda auferir subvenção condizente, mas provável é que venha a fazer pouco. Tão pouco como fez e faz quem a quem entretanto foi emprestada a honra de senhor presidente da República. E ainda bem. A crise é o outro nome recorrente da pátria. E para ela, a crise, há o Governo. Que, para desgoverno da dita pátria, é já mal de sobejo. E circunstância suficiente. Claro que na ilusão democrática refunde-se um motivo de esperança. Como todos os outros, também estes males - crise e Governo - hão-de passar. Aliás, conforme propagandeia a lenda, uma criatura salvífica virá para resolver tal empreitada. Porém, sob a ilusão, no osso, subsiste o incómodo, a incógnita, por não saber-se quando. Nunca talvez seja a resposta. Mas essa não é a resposta que infunde esperança e paciência nos gentios. Por isso finge-se. E, assim, prolonga-se o longo engano democrático. Até ao fim. Governo é uma coisa. Democracia é outra. E nenhuma delas existe ou existe muito no mundo. Em Portugal confirmam-se também essas inexistências ou escassas existências. Pelo que o próximo senhor que se sentar na cadeira de Belém, um homem só, será apenas uma outra reencarnação da Pangloss, sem dispor da faculdade de fazer a pátria diferente. Que é o que é e dita, ainda que em egrégia mentira, le meilleur des mondes possibles. Nicky Florentino.
Desassossego e dioptrias. Quando cegos, somos provavelmente eternos e sempre na insatisfação que nos acomoda. Segismundo.
Vincent, lxx. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-03
Ubi bene, ibi patria. Nenhum nome colectivo é mais do que o que a ficção permite. O rótulo Portugal é um modo de imaginar um rectângulo e respectivas fauna e paisagem. Ou seja, Portugal, enquanto categoria imaginativa e imaginada, tende a iludir os portugueses, no sentido em que, embora existindo menos do que eles, parece existir sobre eles e para além deles. Pelo que a invocação comicieira da pátria, sob os mais diversos epítetos, é apenas uma outra forma de arrebanhar artificial e simbolicamente os portugueses no seu chão. Que é o mesmo que dizer sem elegância, enganar os incautos autóctones, indiferenciando-os. A eleição do senhor presidente da República nutre-se necessariamente deste engano. E, assim, por engano, Portugal (r)existe durante mais algum tempo. Não é redenção. Não é destino. É inércia. Até que dure o conforto do engano. Nicky Florentino.
Excitações. É de reter a densidade dramática do acaso, pim, pam, pum, pumba, catrapumba. Segismundo.
Qual é a tua identidade? Os daqui, deste tugúrio, são maus e, quod erat faciendum, dispostos a
Cenários doismileroseis, ii. Repetir, mais como ameaça do que como cautela, pode ser que te fodas por não saber dançar. Segismundo.
Vincent, lxix. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-02
A sociologia já não é a lição que era. Por circunstância de partilha de transporte para o estúdio da teelvisão, a senhora Doutora Maria Filomena Mónica confidenciou ao senhor Prof. Doutor Boaventura de Sousa Santos que comprou um comboio sofisticadíssimo, made in china, por seis euros, para ofertar ao neto. Segismundo.
Cenários doismileroseis, i. Repetir com propriedade - o motivo dispensa-se -, quero é que te vás foder! Segismundo.
Vincent, lxviii. © Tim Burton. Segismundo.
2006-01-01
All is quiet on new year’s day. Abrem-se os olhos, as imagens são ainda translúcidas, e percebe-se que o dia de ano novo é como qualquer outro domingo, com missa. Jano pode virar as costas, mas a face é a mesma. Segismundo.
Vincent, lxvii. © Tim Burton. Segismundo.
2003/2024 - danados (personagens compostas e sofridas por © Sérgio Faria).