Manifesto contra ilusão. Que não subsistam ilusões! Por mais boa vontade manifestada pelos senhores candidatos à honra de senhor chefe de Estado e por mais lato que enunciem o espectro das suas estimadas feitorias, no próximo dia vinteedois, em rigor, votar-se-á para eleger o senhor presidente de uma Junta de Freguesia chamada Portugal. Quem venha a estar na dita figura pode chatear com solenidades protocolares, espernear coreografias ousadas, sugerir isto, cortar fitas, outorgar comendas, sugerir aquilo, proferir discursos soporíferos, demitir o Governo e dissolver o parlamento - as duas expressões plausíveis de qualquer magistratura de influência ou de qualquer cooperação estratégica entre órgãos de soberania. Pode também comer fartamente bolo-rei, trepar coqueiros, montar tartarugas, usar turbante cor-de-laranja sobre elefantes, ter saudades do tempo de quando pela telefonia se chegava de Argel, declamar enfaticamente poemas e citar os cânones dos literatos, não temer as mãos encardidas de quem trabalha a terra, abraçar (apesar da ferrugem e da limalha) um serralheiro mecânico, julgar que os olhos da respectiva filha lhe conferem particular autoridade para falar sobre o aborto, participar em paradas fandangas em prol de um mundo melhor, velejar e, em chi-coração, apertar os costados do grão timoneiro e camarada senhor dr. Arnaldo Matos. Pode tudo isto, mais e ainda auferir subvenção condizente, mas provável é que venha a fazer pouco. Tão pouco como fez e faz quem a quem entretanto foi emprestada a honra de senhor presidente da República. E ainda bem. A crise é o outro nome recorrente da pátria. E para ela, a crise, há o Governo. Que, para desgoverno da dita pátria, é já mal de sobejo. E circunstância suficiente. Claro que na ilusão democrática refunde-se um motivo de esperança. Como todos os outros, também estes males - crise e Governo - hão-de passar. Aliás, conforme propagandeia a lenda, uma criatura salvífica virá para resolver tal empreitada. Porém, sob a ilusão, no osso, subsiste o incómodo, a incógnita, por não saber-se quando. Nunca talvez seja a resposta. Mas essa não é a resposta que infunde esperança e paciência nos gentios. Por isso finge-se. E, assim, prolonga-se o longo engano democrático. Até ao fim. Governo é uma coisa. Democracia é outra. E nenhuma delas existe ou existe muito no mundo. Em Portugal confirmam-se também essas inexistências ou escassas existências. Pelo que o próximo senhor que se sentar na cadeira de Belém, um homem só, será apenas uma outra reencarnação da Pangloss, sem dispor da faculdade de fazer a pátria diferente. Que é o que é e dita, ainda que em egrégia mentira, le meilleur des mondes possibles. Nicky Florentino.