2006-03-31
It’s the end of the world as we know it ou talvez não. Às vezes, como no caso desta prosa, parece que o José escreve com os pés calçados com chinelos e resvala até acontecer foliculário. É que, com excepção do ícone das fúrias aí exposto - Grrrrrrrrrrr!, de Roy Lichtenstein -, todo o demais manifesto é excessivo nos pressupostos e na avaliação das consequências da provável aprovação de legislação que institui uma proporção mínima de criaturas nas listas de candidatura a órgãos políticos colegiais electivos em função do sexo. Para começar, por mais mirabolante que seja a imaginação, não surge razoável afirmar que, com tal aprovação, “acaba uma certa forma de democracia como nós a conhecemos”. Note-se que, por exemplo, na eleição para a Assembleia da República, o mesmíssimo mecanismo de quotas, não segundo o sexo, mas segundo partições territoriais - distritos e regiões autónomas -, devido à diferente dimensão dos respectivos colégios de recenseados, já existe e não parece que alguma vez tenha sido configurado como sinónimo de cataclismo democrático. O caso é, aliás, bizarro. Eleitas por círculos eleitorais, as criaturas eleitas para deputação representam a nação. Muitas vezes, o que se pretendia com tal dispositivo, assegurar a presença de gente oriunda de diferentes lugares do chão luso no parlamento, é subvertido. Basta atentar no famigerado fenómeno dos para-quedistas, apodo com que se reportam os fulanos que são listados como candidatos por determinado círculo eleitoral, mas que pouco ou nada têm a ver com esse mesmo círculo. Facto agravado por, como é fácil deduzir, haver quem, para o mesmo mandato, consoante a circunscrição pela qual foi candidato, seja eleito com mais ou menos votos do que outros. Há diferenças abissais, sobejamente documentadas pela literatura dedicada ao fenómeno. Por conseguinte, se isto - ofensa flagrante do princípio «uma pessoa, um voto» - nunca incomodou, convém ter presente que a definição de quotas de representação máxima para os sexos em diversos tipos de candidatura, qualquer que seja, não é substantivamente diferente. É apenas uma variação topológica. Claro que este outro caso parece mais bizarro. Mas as mulheres, pela mesma ilusão, serão representantes da nação, não representantes apenas da parte fêmea. Na prática, o que se pretende para as mulheres no acesso a cargos electivos é equivalente aos corredores bus. No asfalto, por motivos menores, circulação de pessoas, há vias reservadas para determinado tipo de transporte. Chamam-lhes públicos, mesmo que sejam de empresas de capitais não públicos. Não interessa para o caso. Mas gostaria de saber qual é o motivo, aferido por critérios de trambelho, que justifica a definição de uma faixa rodoviária para táxis? Às listas para órgãos políticos electivos pode aplicar-se a mesma lógica. Transposta, a lógica é provavelmente estúpida, mas com superlativas e boas intenções, permitir a circulação privilegiada de determinados casos no acesso a órgãos políticos. Mais, esta eventual lei, no que tenha a ver com o fim de uma determinada forma de democracia, será tanto quanto a morte de uma andorinha, pela qual ninguém anuncia o fim da primavera. Em suma, pelo que é permitido estimar, se acontecer a institucionalização de quotas para os sexos em listas de candidatura várias, não decorre daí o fim da democracia tal como ela existe. Há muito que, devido a outros factores, a democracia estiola. E o José, aparentemente enxertado numa ilusão súbita, passa pelo caso como um mastim por vinha vindimada. Artificialismos e arranjos institucionais, pelos quais a democracia foi montada, são mais do que muitos. Pelo que sequer adianta dissertar sobre o alcance da ideia segundo a qual os homens e as mulheres “estão numa situação de igualdade na política, igualdade virtual, mas igualdade”. É que igualdade virtual é, diga-se assim, coisa mais virtual do que igualdade. Nicky Florentino.
Canada Dry. Em termos políticos, a pátria é uma espécie de matilha. Por isso o senhor ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros foi em excursão ao Canadá para ver o que é que o governo autóctone podia fazer pelos gentios pátrios que por aquele chão de lá trabucam e cirandam. Porém, ninguém viu o senhor Prof. Doutor Freitas do Amaral ou o senhor ministro da Administração Interna no jardim zoológico quando, em tocaia e à má-fila, um ror de agentes do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras pediu os papéis a várias centenas de brasileiros. É isto a desfaçatez. E a confirmação, em cão, do slogan «vá para fora cá dentro». Nicky Florentino.
A besta nunca do outro lado do espelho. A reforma do Estado é o Estado a reformar-se. Em imagem, a coisa é equivalente a uma besta a coçar-se e a descobrir em si partes que não suspeitava ter ou sustentar. Posto isto, por ora não é relevante saber se, de facto, o Estado está na senda da própria reforma. Isso é mistério de outra ordem. Relevante, no instante, é o Estado, por necessidade, mostrar-se ao povo. E, pela sua exibição, estimular a consciência gentia do tamanho da besta que é e da inutilidade de algumas das suas parcelas. O caso só não é para susto, susto grande, porque o povo vive infundido na ilusão de que o Estado é uma besta mansa. Mas desde quando e em que natureza é que uma besta se domestica a si mesma? Nicky Florentino.
A falange
Ironia sem destino. Em caso de dúvida é provável que se justifique duvidar. Se motivo mais solene não houver, este, ubi dubium, ibi libertas, enunciado em língua morta, serve perfeitamente. A partir daqui configuram-se dois desafios. O primeiro implica a consciência de que os processos sociais são contingentes. O segundo implica a consciência de que as instituições sociais são improváveis. Alcançado este limiar, fundamento para espanto não é que o mundo não seja melhor do que é. Assombro é que esta merda de mundo não seja pior. Segismundo.
Ocaso. Das couves e das alforrecas até Margarida ® Pinto é o paralelo que vai da objecção de continência à abjecção de consciência. Qualquer coisa como desde «a mim ninguém me cala» até «não me toques que me desarranjas a grife». Nesta circunstância, como surge à tona, sem carecer de ilustração pormenorizada, nenhum raio de providência cautelar protege quem quer que seja, seja de filisteus, seja de camafeus. Ainda bem. Se é para a desgraça, é para a desgraça. Segismundo.
Exercício maiêutico com gente do parêntesis suburbano entre Massamá e Mem Martins e que às vezes assoma à avenida das Forças Armadas. Ele, se vêm para me foder, tudo bem, mas não o façam como na imaculada concepção. Deixem rasto. Ainda acredito em nódoas e em tira-nódoas. Entretanto, comportem-se. Segismundo.
2006-03-30
Se questo è un uomo. O senhor eng.º José Pinto de Sousa, armado em action-man mais do que nunca, anda entretido com políticas de dedal. Desafortunada mãe que criou um filho para isto. Nicky Florentino.
Não me tirem o senhor director do Público que há dentro de mim. Paridade é uma regra de poker, exercício que deve ser devidamente assistido por seiva black label. Nesse jogo, elas entram à vontade, se quiserem. Não é uma questão de lugares na mesa. Assim como não é uma questão de habilidade para crochet. Nicky Florentino.
Vertigem voxis. Porque encerrado no sortido de vozes vagas que o habitam, a convalescença demora a entrar-lhe no corpo. Segismundo.
Títulos que fazem uma vida, mas não todos os dias, xxiii. Die bitteren Tränen der Petra von Kant. Segismundo.
2006-03-29
Langue de bois. Subitamente, o léxico usado pelos senhores começou a ser arrematado em ex. É o modo «é um querido» ou «tragam as espanholas!» de, em política, dizer as coisas. Nicky Florentino.
In utero. O senhor dr. João Almeida, para além de ser uma criatura natural - como as pedras também são -, preside à seita juvenil do partido político que o senhor dr. Pires de Lima deseja mais sexy. Ora acontece que, segundo o seu trambelho, “a presença masculina e feminina são essenciais do ponto de vista da criação e da formação da criança”. O fulano não detalhou se as tais presenças masculina e feminina eram, respectivamente, a do pai e a da mãe. Mas é provável que o seu raciocínio se inclinasse para aí. Muito bem. É que, para ele, a família é a célula fundamental da sociedade, blá, blá, blá, blá, blá, sem se deter sobre que porra é isso a família ou a sociedade. É que, acaso detivesse os seus neurónios a processar com outro alcance, perceberia ele que o trabalho, o desamor, o divórcio ou a morte podem apartar os progenitores, um ou os dois, das criancinhas. E quando isso acontece, já se sabe, as infantas e os infantes não se tornam necessariamente selvagens ou anormais devido à ausência do papá ou da mamã. Nicky Florentino.
Títulos que fazem uma vida, mas não todos os dias, xxii. Flesh and the Devil. Segismundo.
Games without frontier, i. Contra o tempo?, talvez fosse. Mas havia uma rainha no seu cerco não porque ele tenha passado para o outro lado do espelho ou estivesse a enfrentar um bailado do naipe de copas, mas porque ali, équatro? ou dêquatro?, se jogava e coregrafava a vida como num tabuleiro de xadrez. Segismundo.
2006-03-28
Porque a república cansa. Movimento Intervenção e Cidadania, o nome com que foi batizado o cadáver da candidatura presidencial do senhor dr. Manuel Alegre, é rótulo de pouco movimento e, por conseguinte, etiqueta de pouca intervenção e escassa cidadania. O que, em si e por si, não é facto mau. Pois, acaso mais dinâmica fosse a coisa, não seria sensato conceder graças a isso das virtudes republicanas. É que, como são em Portugal, tais virtudes republicanas são virtuosas conquanto sejam quietas e em descanso. Nicky Florentino.
O regresso do lobisomem. Foi anunciada e prometida a simplificação de um ror de manobras da administração pública para que, enunciou a propaganda oficial, o Estado seja mais e melhor poder e para que se liberte e alivie a sociedade - seja lá o que isso for - do espartilho burocrático. O enunciado é bonito e a intenção que se lhe presume subjacente é liberalmente louvável. O problema, no entanto, é que a tal simplificação dos processos administrativos é ditada mais pela singeleza do erário público do que por doutrina abonatória. O que significa que o que está a acontecer é sobretudo a assunção implícita da impotência do Estado. E com tal assunção empresta-se cobertura às políticas de abandono. Ou seja, primeiro o Estado abandona-se a si. Depois abandonará o seu motivo, essa inexistência chamada povo. Ainda bem. A natureza fez o homem para guerrear. E para, pelo combate, sobreviver aos outros. Nicky Florentino.
Passos para a missão do fim. No que há política concerne, o realismo é preferível ao bucolismo. Pode ler-se Thoreau, pode compreender-se Walden. Mas o que se pretende, entende o senhor primeiro-ministro, é facilitar. Simplex, portanto. Que é o mesmo que continuar. Mas sem se pensar muito sobre o assunto. Para pensar, que toda a gentia cambada de babalus saiba, há já alguém. Não um alguém qualquer, amigo, biltre ou assim, convenientemente colocado ao abrigo de uma sinecura honrosa. Não, não. Ao invés, quem está mandato para pensar e ilustrar os princípes pátrios, é alguém técnico, especialista, com diploma e certificado que atesta para além de qualquer dúvida a respectiva competência. É por isso, porque gente de bem ora por todos tanto nos bureaus quanto nos corredores entre os bureaus, que o povo está dispensado da chatice que é governar. Se. Nicky Florentino.
Estórias da carochinha, iv. Ela, costumas sonhar comigo? Ele, os pesadelos contam? Segismundo.
O lado nocturno da inocência. A têmpera da lua soltou a besta que a habitava. Enquanto durou a noite, ela, ávida de carne e sangue, uivou e agitou as garras. Os lobitos foram as suas presas preferenciais. Chegada a aurora, com os avatares da manhã, ali já não existia qualquer escuteiro tenro e morno. Foi quando ela colocou a capa sobre os ombros e o seu capuz de veludo escarlate sobre a cabeça, pegou na alcofa e se dirigiu para o bosque. O Marquês.
2006-03-27
A democracia como máximo possível de amoralidade. Segundo Niklas Luhmann, a democracia corresponde à bifurcação do topo do sistema político diferenciado, resultante da distinção entre governo e oposição. Neste sentido, em termos estritamente políticos, o facto de a oposição ser frouxa ou carente de trambelho não constitui problema. Ao institucionalizar-se a dualidade governo-oposição, o sistema político tem condições de programar-se para as contingências e de operar em regime auto-suficiente. O que significa que, mesmo quando a oposição mais não é do que uma plataforma de espera de uma determinada seita sequiosa pelos despojos públicos, a ordem democrática ultrapassa a improbabilidade da sua condição e resiste. É pouco. Mas é provavelmente o que a democracia, no que é, é cada vez mais. Nicky Florentino.
Simplex. Segundo a retórica governamental, foram ou serão brevemente activadas, no conjunto, trezentas e trinta e três medidas de simplificação do plexo administrativo. Metade do número da besta, portanto. Ainda assim, a besta maior, o Estado, subsiste, tipo a última flor do Lácio, inculta e bela. E por ela todas as pequenas bestas honradas que não é díficil elencar e que andam por aí. Pois é, há dias em que, perante tal paisagem e tal fauna, a paciência se esgota e o desiderato é ver o Estado resumido ao horizonte que lhe estimou Marx, ser um mero departamento estatístico. Isto, sim, seria o Estado plenamente realizado como besta útil. Ajudaria também, embora esta seja apenas uma questão de ordem estética - não vital -, se o limite de todas as grandezas recenseadas fosse seiscentosesessentaecinco. Nicky Florentino.
Títulos que fazem uma vida, mas não todos os dias, xxi. Les Chants de Maldoror. Segismundo.
Tocata e fuga. O ritmo é um tempo sem corpo, é resistência, é movimento contra e devolução, nomes quase infinitos de um modo de voar e ser. Segismundo.
2006-03-26
A falência da teleologia. Segundo a edição de hoje do Público, o senhor secretário-geral do PCP disse: “há mais vida para além da democracia”. Até pode ser que sim. Mas não se chama revolução. Quem vê telenovelas sabe isso perfeitamente. Quem vê jogos de futebol também. Nicky Florentino.
O Estado como ração de combate. Segundo o que se depreende das intenções da trupe socialista, primeiro acontecerá a «regionalização técnica», depois acontecerá a «regionalização política». Ou seja, primeiro o osso, depois a carne, embora, neste contexto, a regionalização seja peixe, sob a forma de atum de conserva. Nicky Florentino.
Títulos que fazem uma vida, mas não todos os dias, xx. Se una Notte d’Inverno un Viaggiatore. Segismundo.
Jogo dos equinócios. O tempo é uma ilusão. Por isso pode ser manobrado, para diante ou para trás, consoante a gravidade seja primaveril ou outonal. Segismundo.
2006-03-25
Os tons da esperança na parede. O catálogo chamava-lhe invenção, eles chamaram-lhe Shrek. Segismundo.
2006-03-24
O socialismo de gaveta. O senhor primeiro-ministro foi a Bruxelles afirmar a necessidade europeia de uma nova geração de políticas sociais. Não interessa discutir a geração, se nova ou se velha, das tais políticas que o senhor eng.º José Pinto de Sousa entende necessárias. Relevante é a discussão do qualificador justaposto às ditas políticas. Porque é muito provável que a referida nova geração de políticas sociais mais não seja do que políticas, outras. Ou seja, políticas sociais significa outra coisa. Nicky Florentino.
E ninguém cala, esta nossa voz. Ó Francisco, e o Mike Walsh?, e aquele golo do Vermelhinho, entre as brumas, em Aberdeen?, e a dupla de centrais Freitas e Simões?, e o Costa naquele memorável jogo, nas Antas, dois-zero, contra o Sporting?, e o Eloy?, e o golo do Futre, cá, contra o Vítkovice?, e o Geraldão?, e aquele jogo no estádio da Luz para a Supertaça?, e o Herman Stessl?, e o António Morais?, e... chiça, até o Jacques venceu a bola de prata. Segismundo.
Continuação dos trabalhos bucólicos. Uma única saída, uma única hipótese, partir paredes. Segismundo.
Títulos que fazem uma vida, mas não todos os dias, xviii. Brutti, Sporchi e Cattivi. Segismundo.
2006-03-23
Depois de muitos anos a beber sumos Compal. Que porra é isso um partido político mais sedutor, atractivo e sexy?, a que fez alusão o senhor dr. Pires de Lima. Nicky Florentino.
Geologia política. As batalhas campais em França. O senhor presidente da Comissão Europeia a cortar uma vaca de açucar. Como sempre, é mais verdade sous la plage, les pavés do que sous les pavés, la plage. Nicky Florentino.
Nobre povo. A condição moderna da individualidade é o produto da condensação simultânea de uma entidade civil e de uma entidade cívica num mesmo corpo. É por isso que chamar cidadão a um indivíduo é, no mínimo, um equívoco metonímico. Nicky Florentino.
Estórias da carochinha, iii. Não ver. Não falar. Pagar por isso. E pelo resultado do jogo. Segismundo.
2006-03-22
Da
Solução. As palavras misturam-se e constituem uma fase única com mais facilidade do que as coisas. O que significa que, embora povo e poder se encontrem no vocábulo democracia, a democracia reificada jamais é democracia, porque povo é povo e poder é poder. Nicky Florentino.
Imagine there’s no heaven. Já amanheceu, mas ainda é ontem. O corpo continua sem tempo para se inclinar. O layout da face é errado. No espelho, reflectido, é o encontro com quem já foge. A noite foi. A oração é l’enfer, c’est les autres. Um jorro, lava, espuma, saliva. Sangue?, não. E este parafuso, seja em fade-in, seja em fade-out, sempre a apertar. Mói as mãos, o peito também. Não é loucura. É culpa. É a dúvida. A que horas, logo, começa o jogo de futebol? Segismundo.
2006-03-21
O fosso. As oposições
Títulos que fazem uma vida, mas não todos os dias, xvii. J’Irai Cracher sur Vos Tombes. Segismundo.
Estórias da carochinha, ii. Eu sou o Jack Bauer do cotão, disse ela. Ele, magnânimo, consentiu. Segismundo.
2006-03-20
As tômbolas da fortuna política. As ilusões são confortáveis, mas iludem. Em Portugal, os partidos políticos com propensão ao poder são partidos de cartel, organizados segundo uma lógica de franchise territorial. Ou seja, tais partidos políticos são uma entidade híbrida e dúctil, autêntica máquina de galopinagem e assalto, que resulta da orquestração de características dos partidos de notáveis, dos partidos de massas e dos partidos abrangentes, num esquema que encontra e articula diferentes escalas: o nacional, o distrital e o concelhio. Na prática, os partidos políticos desse tipo são uma espécie de cavalo troiano que permite aceder ao imo do Estado e que, entre outras consequências, possibilita a distribuição privilegiada dos despojos e das honras públicas entre os respectivos militantes ou simpatizantes mais graduados. Pelo que, para além das ilusões e do enfático discurso sobre a democracia e a democratização da democracia - em termos políticos não há expressão mais estúpida do que «democratização da democracia» -, o dispositivo das directas é apenas uma outra forma de formalizar o escrutínio do corpo, da figura, que simbolicamente operará a federação dos interesses e das conveniências da fauna afecta. E não é mais ou é menos democrática do que a forma congressual. É apenas diferente. Nicky Florentino.
Laranjina Cê. O senhor dr. Marques Mendes é o sumol de laranja do PSD. Vem em lata e tudo. Mas, parece, não chega para evitar a desidratação da sedenta seita. Nicky Florentino.
Reach out and touch faith. Quando não há sobremesa, a vida torna-se um problema de ementa. Segismundo.
A expiação da bastardia. Sobre o altar lúgubre, o sacerdote em ofício proferiu as palavras da liturgia, sei que desejas o hossana, a luz, mas, nesta masmorra, mandado pela glória desta egrégia casa, concedo-te a morte para a tua e para a nossa salvação. Após estas palavras, com competência de magarefe, degolou o rapaz, recolheu o seu sangue numa selha e arremessou o corpo exangue sobre os outros cadáveres. Depois ordenou o próximo! e mais um resíduo filial foi-lhe entregue para o devido reparo. O Marquês.
2006-03-19
Quem não tem Maquiavel caça com Espada, que é o mesmo que
Em política há uma época chamada «encher pneus». As oposições destras, caídas nessas espécies de vesúvios chamados CDS/PP e PSD, entretêm-se com congressos. Compreende-se. Após a experiência dos despojos decorrentes da acção governativa, já só o poder, pelas sinecuras e outros proveitos tangíveis e intangíveis que concede aos respectivos acólitos, federa essas gelatinosas constelações de conveniências e frouxa doutrina chamadas partidos políticos. Nicky Florentino.
Outrora agora. O senhor sopa-fria aceitou o convite que lhe foi endereçado pelo senhor presidente da República, a fim de que integrasse o conselho de Estado. Outrora, semelhante convite, declinou. Porque ao domingo à noite, antes, palrava na teelvisão. Como agora. Nicky Florentino.
Títulos que fazem uma vida, mas não todos os dias, xvi. Born Sandy Devotional. Segismundo.
2006-03-18
Títulos que fazem uma vida, mas não todos os dias, xv. Touche pas à la Femme Blanche. Segismundo.
2006-03-17
Disseram sucelências. O senhor Prof. Doutor Augusto Santo Silva escreveu uma epístola ao senhor director do Público. O motivo foi o facto de entender que umas quantas respostas que havia dado durante uma entrevista foram significativamente adulteradas na versão estampada nas páginas do jornal. Os exemplos são flagrantes. O senhor director do Público, porém, entende que não houve alteração semântica, apenas economia verbal. Explicou, as respostas não foram adulteradas, mas compactadas. Tal justificação é frouxa e conveniente. Porque o problema não é um estrito problema de número de caracteres e de legibilidade. É um problema de equivalência e de respeito. Nicky Florentino.
Mercado negro. A Inês classificou a venda de alcatrão (do coração) para asfaltar um troço de estrada. Segismundo.
Maternidade, sinónimo de sinistro automóvel. As mães são mulheres. Quanto a esse pormenor, durante algum tempo, todos os filhos são inocentes. Mas, depois, se não as dominam, elas partem-lhes o carro. Segismundo.
Insânia boulevard, ii. A consciência é um bazar de vozes. Todas as vozes falam, todas as vozes licitam. Todas as vozes barganham. Ou seja, a consciência não é uma voz. É, sim, um colégio de vozes. Por isso, um dos acessos à loucura é pela tentativa de descobrir dentro a voz que sintetiza todas as outras vozes interiores que não se calam. Segismundo.
2006-03-16
Insânia boulevard, i. Quem é voar?, perguntou-lhe uma das vozes insones que parlamentava dentro de si. Ele respondeu com o seu silêncio, voar sou eu, mas caio, e continuou a ouvir aquele diálogo sonâmbulo que lhe era interior, sem conseguir sair dele. Segismundo.
2006-03-15
Das anunciações do regime. Olhando a paisagem política, parece que quase nada acontece, excepto a modorra dos dias comuns. Mas, entretanto, sob o véu da opacidade típica dos partidos políticos, no CDS/PP, no PS e no PSD as entranhas das respectivas hostes pululam. Na prática, pelo jogo dos poderzinhos vão-se tecendo os poderes, os poderes que, pela confirmação ou pela báscula eleitoral, serão poder amanhã. Uma parte significativa do ranço partidário é processada no âmbito destas manobras internas, após as quais, por via de uma amnésia extraordinária, é olvidada a sua inexistência. E ao que resulta do jogo das manhas, manigâncias e expedientes afins, jogado durante tais manobras, é outorgado um estatuto limpo, institucional. Depois, aparentemente, o lodo volta a assentar. E o simulacro da salubridade torna a inspirar a ilusão do asseio político. Tudo isto se passa à margem dos sensíveis sentidos da maioria dos gentios, demasiado preocupados e entretidos com a sua vidinha. Daí que, pelas notícias que sobre o assunto têm vindo a ser estampadas no Público, se perceba que o futuro voltará a acontecer como confirmação da culpa de ninguém. É claro que alguns ainda se atrevem a falar em esperança. Mas, pela comédia, o futuro será drama e será tragédia, outros nomes da miséria. Que é o que Portugal é. Nicky Florentino.
Coisas em saldo oitoxdois. O João desenhou uma tabela com o propósito de comparar «processo democrático» e «mercado». Oito linhas, duas colunas. Valem pelo humor subjacente. Porque as coisas do mundo não são assim, tão caricatura. Nicky Florentino.
Torres não é Delgado, mas é como se fosse. O Filipe escreveu sobre o caso senhor dr. Cintra Torres. Segismundo.
Eterno retorno. O mesmo corpo, que começa por ser a cápsula de uma transcendência, acaba por ser uma parcela de um território. Segismundo.
Investigação sobre o purgatório. Ninguém pergunta quem foi William Blake?, se a resposta é a minha mãe é uma dor, o meu pai é o sofrimento. Segismundo.
Captações in High Windows, de Philip Larkin.
This be the verse
They fuck you up, your mum and dad.
They may not mean to, but they do.
They fill you with the faults they had
And add some extra, just for you.
But they were fucked up in their turn
By fools in old-style hats and coats,
Who half the time were soppy-stern
And half at one another’s throats.
Man hands on misery to man.
It deepens like a coastal shelf.
Get out as early as you can,
And don’t have any kids yourself. Segismundo.
A seita do divã. Há mais um psiq que ele trata por tu. Segismundo.
2006-03-14
A micção. Enquanto necessário e se necessário, o Estado necessário é o Estado suficiente. Daí que, em termos políticos temperados pelo trambelho, não seja provida de senso a apologia do Estado mínimo. Na prática, tal apologia tem um equivalente vitrocerâmico: o urinol com uma mosca estampada. Percebe-se o efeito da animação produzido pela representação do insecto, mas, enquanto elemento de orientação, é perfeitamente dispensável. Assim é também em relação à defesa a todo o transe do Estado mínimo. Pois a questão relevante do Estado não é mais a sua dimensão do que a sua utilidade. Nicky Florentino.
Aquela máquina! Uma opa é uma espécie de upa. Por via dela, uma parte tenta dar o salto, cobrir outra parte, crescer. Assim é também no caso da opa do BCP sobre o BPI. Como diz o senhor presidente do conselho de administração da primeira seita de agiotas, a opa não é hostil, é apenas não solicitada. Há-de haver aqui, aliás, alguma lógica. Claro, o mercado. Claro, a concorrência. Claro, os dividendos. Claro. Porém, aquém de toda a clareza, curiosas são as chamadas participações cruzadas. O BCP é também do BPI. O BPI é também do BCP. O capitalismo é autofágico. Come-se e cresce. Nutre-se tanto das misérias que gera quanto das próprias misérias. Máquina mais maravilhosa não há. Fossem todas as máquinas de lavar assim e o mundo um asseio mais do que um passeio. Nicky Florentino.
Sein und Zeit para banda desenhada, ii. Entre os homens que se chamam a si próprios homem, a cicatriz é exercida no posto, como missão. É como acreditar em alguém que é o outro lado, o lado bê. É como confiar no seu medo, alcançar a fronteira, passar e passar de volta. O ser impregna, é gesta. Segismundo.
Estórias da carochinha, i. Ela comprou uns sapatos novos, alvos, com berloques. Depois mostrou-os a ele, como quem rogava em silêncio, chama-me Cinderela. Segismundo.
2006-03-13
Novela all’italiana. Na teelvisão, Silvio Berlusconi levantou-se intempestivamente, despediu-se da jornalista que conduzia a entrevista no programa In mezz’ora e disse: e poi dicono che la Rai è controllata da me. Todos os miosótis são inocentes. E daí, da respectiva inocência, decorre a puta da sua desfaçatez. Nicky Florentino.
O país é o Governo, o Governo é o país e vice-versa. Pangloss é a última e a derradeira das novas fronteiras. Isto é de tal modo evidente que, disse o senhor eng.º José Pinto de Sousa, “quem acha que prejudica o Governo promovendo o pessimismo e rejeitando todos os sinais de recuperação da confiança, não está a fazer oposição ao Governo, está a fazer oposição ao país”. Por outras palavras, quem assim faz ou está a marrar contra o comboio ou não é um miosótis. Aqui e agora, como sempre, não há isso d’the third way. Nicky Florentino.
O miosótis que nos aclara todos os dias, mesmo à noite e quando o céu está nublado. Segundo a doutrina do senhor eng.º José Pinto de Sousa, “o dever de qualquer responsável político é o de lutar pela confiança”. O fulano é obviamente o gajo certo e mais encharcado de autoridade para atribuir este dever aos outros porque, como é consabido, quando as circunstâncias o obrigaram à transumância e a pastar na oposição, mais não fez do que insuflar confiança entre os gentios pátrios. Aliás, a criatura é justamente celebrada pelo apodo «a sempre flor da fidúcia». Nicky Florentino.
O conforto equívoco das arestas. A posição. A oposição. E, no dorso de ambas, a articulação litúrgica versus. Segismundo.
Esta esfera tem uma capacidade limitada. Comparadas com as noites, as manhãs são desagradáveis. O sol atrai as criaturas das tocas. O mundo torna-se mais denso, irrespirável. As ruas são comprimidas pela multidão. As manhãs asfixiam e prolongam-se até à tarde, até ao refluxo. À noite, porém, as ruas recuperam, expandem-se. A luz esvai-se. Compreende-se, então, o que é a harmonia. Segismundo.
2006-03-12
Os dias do fim. Um ano, trezentosesessentaecinco dias de décimosétimo Governo constitucional, a missão rosa shock and awe, em versão pátria. Muitos dias de pavor, poucos dias de choque. Nicky Florentino.
Mehr Licht! Os motivos não eram portentosos. Eram poucas as peças de Frida Kahlo expostas. E eram de Frida Khalo. Por isso, embalado em curiosidade de filisteu, ele foi ao CentroCulturaldeBelém com o propósito de apreciar sobretudo Unos Cuantos Piquetitos. O caso, porém, perturbou-o. A iluminação era uma autêntica merda. Aliás, ele olhou para a maioria dos quadros e viu aí fantasmas e reflexos. Em nome dos cinco euros que lhe custou o ingresso - e da puta da decência -, obviamente, bastavam-lhe apenas aqueles que a desgraçada mexicana pintou. Segismundo.
Dissidência cognitiva. Corpos vagos. Não escreveu desassombro. Imaginou edifícios a chorar. Imaginou um contador e unidades de luz. Não escreveu semen est verbum dei. Imaginou uma caixa para guardar mãos. Imaginou uma sequência de narrativas dentro de narrativas. Vultos sonâmbulos. Não escreveu. Não imaginou. Guardou-se numa ilustração. Cravou em si as asas. Fingiu-se mariposa. Não escreveu espasmo. Não escreveu acordo. Não descobriu o seu imo. Imaginou uma rede suspensa. Escreveu noite. Depois apagou. Vozes capitosas. Na página sobrou apenas a legenda para uma imagem, sou um sarcófago de dúvidas, não consigo começar. Segismundo.
Sein und Zeit para banda desenhada, i. Começamos por ser eternos, mas, depois, pelo script das lágrimas, a negro, a vida mortaliza-nos. É sob essa condição que acordamos urgentes e contra o horizonte que o tempo já, como sempre, abrasa. Segismundo.
2006-03-11
Títulos que fazem uma vida, mas não todos os dias, xii. The Mind Is a Terrible Thing to Taste. Segismundo.
2006-03-10
Integralismo lusitano. O outro, o finado, intitulou-se o senhor presidente de todos os portugueses. Agora o senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva anunciou-se como o senhor presidente de Portugal inteiro. Esta expressão, como a do outro, é redundante e, portanto, estúpida. Pois Portugal, enquanto Portugal, é inteiro, integral, não é aos bocados. Para além disso, é coveniente não confundir Portugal com a república portuguesa. Que é o que é. Assim como o raio d’Os Lusíadas têm dez cantos. Nem menos nem mais. Nicky Florentino.
Em política, a culpa é casada com o chefe. O senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva disse que, caso a honra de senhor presidente da República lhe viesse a ser emprestada, a pátria conheceria venturas. Obviamente que, salvo alguns discípulos mais assanhados, os gentios não acreditaram nas palavras do fulano. Não porque não acreditassem nele, mas porque se conhecem bem enquanto granel e, por isso, sabem que melhores venturas são apenas as que lhes saem do corpo, a dispêndio de labuta e suor. Na prática, os gentios destilam a própria culpa na ilusão de que os chefes existem para serem culpados. Aliás, se assim não fosse, os chefes seriam dispensados. O senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva irá sofrer por isso. Armou-se em carapau de corrida, mas há muito que deixou de correr os cento e dez metros barreiras. Veredicto: o fulano é culpado, obviamente. Nicky Florentino.
Missão impossível. A empreitada era simples, comprar uma tábua para queijos, coisa útil. Ela foi e comprou um frappé. Mas muito giro, disse. Segismundo.
Auto do que foi uma caminhada. O caso começou por ser um gesto de simpatia. Mas depois de sentar-se ao seu lado, para ser levada à boleia, ela benzeu-se. Ele procurou sondar os motivos daquele acto. Ela explicou-lhe que, para além de ser hábito seu, aquele sinal garantia-lhe a intercessão da divina providência, mistério que se encarregaria de a transportar em segurança até ao destino pretendido. Disse isto com encharcada convicção. Se assim era, ele decidiu esperar para confirmar. Quando demorada começou a ser a espera, quis a supersticiosa saber o motivo por que não arrancava ele com o carro. Ele disse-lhe que esperava deus, por, presumira das palavras dela, ser não apenas combustível mais económico mas também melhor piloto. Como deus não chegou entretanto e a noite já se prenunciava no horizonte, ela acabou por decidir ir a pé. Entregou-se às suas pernas e foi. Pelo caminho, entretida a debitar o rosário, sofreu uma entorse. E tombou. O Marquês.
2006-03-09
Shake dog shake. A indignação é fácil. Parece que se compôs para aí um coro de zelotes e um corso de mansos incomodados por o senhor dr. Mário Soares, após remansa assistência ao folclórico acto de tomada de posse do novel senhor presidente da República, não ter ido cumprimentar sucelência. Por acaso, alguém se recorda onde estava o senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva aquando a tomada de posse como senhor presidente da República, pela primeira vez, do senhor dr. Jorge Sampaio? Pois, segundo os anais, o fulano não apenas não sacudiu a mão destoutra criatura que o bateu na contenda presidencial de milnovecentosenoventaeseis, como também se dispensou das solenidades anteriores. A memória é uma puta traiçoeira, a primeira pedra. Nicky Florentino.
Cenas do próximo episódio. Nos termos em que decifra o enunciado constitucional, o senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva considera que “o presidente da República deve acompanhar com exigência a acção governativa e deve empenhar-se decisivamente na promoção de uma estabilidade dinâmica no sistema político democrático”. Traduzindo, se as palavras, «acompanhar com exigência a acção governativa» e «estabilidade dinâmica», valem o que significam, há-de acontecer merda. Nicky Florentino.
Gone with the wind. Palavras do novel chefe da tribo pátria, “desejo que a minha eleição para presidente da República fique associada a bom tempo para a vida do país, que brisas favoráveis o conduzam ao rumo certo, que os portugueses reavivem a esperança e ganhem o ânimo e a crença que permitam conduzir a nau colectiva para além da distância, da incerteza e do desconhecido, até porto seguro”. Como é óbvio estas palavras são gratuitas, meras palavras de circunstância, solenes. Porque no que à meteorologia concerne, brisas, zéfiros e virações, os desejos do fulano valem zero. E o que tiver que ser será, sem atender aos desideratos salvíficos da criatura ou ao raio que a parta. Nicky Florentino.
Jorge morreu e depois. O dia prometia ser mais nostálgico. Talvez até lacrimoso. Mas foi apenas um dia como qualquer outro, não obstante hoje ter-se consumado o destino dito em Janeiro último como futuro. Agora, claro, ó pátria, sente-se a esperança e a confiança a insuflar. O senhor dr. Jorge Sampaio ressuscitou para civil. E era mesmo o senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva, quase acabado de sair do regime de hibernação a que foi remetido e se remeteu, que cá fazia falta. Em política, é isto, não haver bela sem senão, a porra do destino. Para já, no imediato, finge-se que nada se passa. Só depois, quando tocar o osso, é que hão-de começar os clamores. Será tarde. Mas é sempre já tarde. Nicky Florentino.
Sem amaro, sem amparo. Parte significativa da identidade de alguém é o produto de si pelos seus passos, por onde passou, quando passou, como passou, se passou. Por isso, ele foi-se embora. Segismundo.
Os graffiti do pátio Beckett, v. Já não corre, foge apenas. O motivo da fuga, porém, permanece o motivo da corrida. Segismundo.
2006-03-08
Fim, de final. Começa amanhã o fim do senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva. Como é óbvio, não havia necessidade de tamanha espera. Aliás, sem remorso ou ressentimento, sem prejuízo para quaisquer das partes, o assunto poderia considerar-se definitivamente encerrado antes sequer de começar. Nicky Florentino.
Para o infinito e mais além. O senhor dr. Jorge Sampaio irá ficar na história. Não tanto por feitos do seu engenho ou glória da sua lavra, mas por força das circunstâncias. Poderá dizer-se que é assim com qualquer criatura. O que fica registado nos anais é a medida do seu confronto com o tempo e o respectivo lugar, o mundo. Porém, o caso do senhor dr. Jorge Sampaio não é paradigmático. Ou seja, a graça do fulano ficará estampada na história lusa com a mesma relevância e honra de qualquer das personalidades do rancho in progress que foi agraciado com comendadoria ou medalha, sem previamente ter prestado qualquer prova de esforço olímpico, curling incluído. Por isso, tchauadeusóvai-tembora. Vai tarde, mas que vá. Em paz e com quem o acompanhar. Nicky Florentino.
Self-service. Há lugares onde nos sentimos excesso, não sobejo, para além do que somos, lugares de onde, por não ser possível o seu abandono, não podemos sair. É isso o cativeiro, é isso o corpo nosso de cada dia. Segismundo.
Página do livro das sentenças, xxx. Para tudo, quando há vozes dentro, bastam duas regras. Dieta de maçãs e silêncio sobre espectros ausentes. Segismundo.
Torpedo, o pistoleiro da sombra justa. © Jordi Bernet. Segismundo.
2006-03-07
A etapa pós-irish coffee. O senhor eng.º José Pinto de Sousa entende que a Finlândia é que é o horizonte desta pátria. O fulano leu provavelmente Castells, fez uma excursão ao lugar, constatou e confirmou a suspeita e disse, aquele é o nosso norte. Qualquer gentio percebe a estupidez do enunciado. Aqui, sobre este solarengo chão, ninguém deseja ser finlandês. Os motivos desse lapso de desejo são mais do que muitos. Por exemplo, quem é que, sem ser maluquinho da bola, consegue dizer o nome de um clube ou de um jogador de futebol finlandês? O Litmanen não conta. Para além disso, há muito que muitos gentios já anteciparam o caminho preconizado pelo senhor primeiro-ministro. Em conformidade, seguram e manipulam sofregamente nokias. A osmose demora, mas os aparelhos, esses, porque os operadores são competentes, funcionam. Pelo que o que surge necessário à pátria é sobretudo a paciência, não o exemplo da Lapónia. Nicky Florentino.
Eternidade blues. Pela telefonia da cápsula em trânsito, no regresso à cidade pequena, uma voz anunciou a morte de Ali Farka Touré. Engano óbvio. Porque depois disso, através do mesmo feixe hertziano, na mesma sintonia, em frequência modelada e em estereofonia, ouviu-se Amandrai, parcela do álbum Talking Timbuktu. Seja como for, à cautela, ele pensou, taquepariu o mundo quando aí se cava para crescerem as sementes do silêncio. Segismundo.
Morte aos lentos! Em velocidade, sob allegro vivace, a infracção é uma sensação de liberdade. Mas há quem não colabore. Alguns, os estraga-fodas, atravessam-se inoportunamente no caminho, placando a marcha. Outros, os que nem fodem nem saem de cima, arrastam-se demoradamente diante, sem transitarem para a faixa mais à direita. Depois, há ainda essa hodierna espécie de degeneração de polícias-sinaleiros sobre montada, a brigada de trânsito da guêéneérre, que atrasa a fluência e o ritmo solto do trânsito. Segismundo.
A estação das pressas. Áum, destino capital. Vertigem. A velocidade ajusta o espectro ao corpo, conforma um com outro, produzindo o único momento em que a identidade dele é compacta, com limites íntegros e reconhecíveis. A solidão é imaginada. Os outros cercam-no, com cápsulas e velocidades distintas. É contra eles. Os outros estorvam-no. Os outros são para ultrapassar. Sente-se urgente. Ali, naquele corredor, naquele não-lugar extenso, ele corre, não concorre. Porque há um destino intermitente que o espera. E não pode esperar. Segismundo.
Títulos que fazem uma vida, mas não todos os dias, x. The Book of the Damned. Segismundo.
Tríptico, o meio entre virtudes. © Jordi Bernet. Segismundo.
2006-03-06
Siga para bingo. Ai, ai, a Finlândia é que é o nosso paralelo em desejo comum. Pois... Mas porque o mais difícil é escolher o caminho a percorrer - neste pormenor o atraso tem vantagem, dispensa o esforço de desbastar o horizonte e, à parasita, basta seguir o rasto deixado pelos pioneiros -, que não demore a neve a cobrir o senhor primeiro-ministro daqui, usando-o como molde para um boneco. É que a empreitada, ir para diante, é longa, para demorar décadas, e, antes, é conveniente aliviar a carga. Nicky Florentino.
Em órbita saturnal. Corremos para o espaço invísivel. Depois, acordamos mais quietos, mas sem anéis, caídos num santuário espectral. Segismundo.
We’re on a road to nowhere. Patamares, escadas, corredores, portas, quase um labirinto. Passos, mais passos. Nenhuma saída, tudo horizonte. O caminho é também um cerco, apagando-se imediatamente após cada passo. O exterior é inefável, uma paisagem imaginada. A vida é mesmo aqui, constrita, a puta, disse ele. Depois foi queimar papéis velhos, consumar o holocausto do regresso. Das cinzas, sabe, nada renascerá. Pois basta apagar a origem para perder o destino. Segismundo.
Torpedo, padroeiro nosso. © Jordi Bernet. Segismundo.
2006-03-05
Continuação. Persistem as manobras contra o vento. Ainda há moinhos no horizonte. Segismundo.
2006-03-04
A sibila da desgraça anunciada. O pior ainda está para vir, disse o senhor eng.º José Pinto de Sousa, em entrevista ao Expresso. O mesmo que, com trambelho, disse que os votos definem grandezas eleitorais, não juízo. O que significa que é esta, tau!, a explicação do senhor primeiro-ministro para o facto de uma chusma de gentios ter votado no PS na última eleição legislativa. Nicky Florentino.
Planar. O vento assobia, embrulha para alar, não transporta para destino certo. Segismundo.
Títulos que fazem uma vida, mas não todos os dias, ix. Os monstros são nossos amigos. Segismundo.
2006-03-03
Rodeo. O senhor dr. Jorge Sampaio, aleluia!, está para sair de cena. A consequência é que o grande domador da pátria, o Buffalo Bill da estepe lusa, o senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva, está nas vésperas de ser alcandorado nessa excelsa padiola chamada presidência da República. Como sói dizer-se, ao bem, a abalada daquele, segue-se o mal, a chegada deste. É a continuação do circo, portanto. Nicky Florentino.
Safari. O senhor presidente do CDS/PP acusou o senhor primeiro-ministro de “querer ser o Tarzan da co-incineração”. Aqui, porém, nada se sabe sobre a justiça de tal libelo. Entre os superiores motivos, porque neste tugúrio ninguém padece dessa faculdade extraordinária, saber que personagem selvagem da co-incineração, o Tarzan, o Sandokan, o Sexta-Feira ou a Matoaka, o senhor eng.º José Pinto de Sousa quer ou não quer ser. Também não é necessário. Como a barraca abana, sabe-se que isto, Portugal, é o circo, não é a selva. Nicky Florentino.
Literatura fora de ordem. Sein und Zeit ao lado de L’Être et le Néant ao lado de De l’Existence à l’Existant. Hoje, verificada ainda, naquela estante, esta ordem é apenas uma ruína, uma cicatriz, o despojo de uma morte sem data firme. Que, parece, quase nunca aconteceu. Segismundo.
Vincent, cxxviii. © Tim Burton. Segismundo.
2006-03-02
Bis. Uma interpelação parlamentar ao Governo é sobretudo um expediente de repetição extemporânea. Porque sucelências, tanto quem interpela quanto quem é interpelado, apenas tornam a dizer o que já disseram e é sabido, embora num linguajar solenemente enfatuado, para acta, transformando a Assembleia da República numa espécie de câmara de ressonantes. Nicky Florentino.
Os graffiti do pátio Beckett, iv. Em todos os corpos, porque se derramam, há uma necessidade de dor semelhante à necessidade de sangue. Segismundo.
Vincent, cxxvii. © Tim Burton. Segismundo.
2006-03-01
A reificação da espera. Consta que o senhor presidente da República tem uma agenda animada para os próximos dias. Parece que, antes de abalar, a criatura deseja despachar umas quantas pendências simbólicas. Que seja. Por ora quase tudo é simbólico. Apenas a demora da passagem do fulano à respectiva disponibilidade, louvada seja a madre e santa república, é material. Melhor sorte apenas se, aquando o tchauadeusóvaitembora presidencial, o senhor dr. Jorge Sampaio levasse consigo o inominável emprestado à honra de senhor procurador-geral da República. Seria tipo shampoo dois em um e anti-caspa para cabelos oleosos. Nicky Florentino.
Página do livro dos googlemas. Sobre sofware para albergue, albergue reality show ou danados do country, aqui, nada a declarar. Segismundo.
Intervalo para écloga. Hoje a sequência de minis com o Sueco foi menos demorada. Não haveria jantar de rapazes. Quase nove da noite, ele partiu, quando os outros partiram, como destino a casa. Iam chamando-o para jantar. Iam chamando-o para bolinhos. Mas ele estava detido a ouvir uma lição de meteorologia naif pelo Chico Conde. Ao mesmo tempo, de quarto em quarto de hora, tocava o sino da igreja. Entretanto, apareceu o Zibu, saído da tasca vizinha. É isto, em duzentos metros da cidade pequena haver tantos lugares onde o confronto pode acontecer, que, às vezes, faz o jantar arrefecer. Segismundo.
V for vendetta. Ele há dias em que a luta pela sobrevivência não chega a acontecer. Claro que as pequenas bestas devoradoras clamaram e reclamaram. Que o tio mau isto, que o tio mau aquilo. Mas o caso resume-se a um pormenor de timing e a um problema de proporções. Ele chegou antes e é maior. Para além disso, é provável que não fosse pacífica a partilha do pequeno sobejo do pudim. Daí que ele tenha decidido comer também o resto. Segismundo.
Fardos de perseguição. O transporte de livros e discos de uma reserva doméstica para outra é motivo de perplexidade para ele. Por um lado, sobressalta-o o volume obsceno da mercadoria a carregar e a descarregar, o número de viagens a fazer para depositar a cultura no novo destino. Por outro lado, quase tudo lido e tudo ouvido, perante o cúmulo, percebeu ele o motivo de tanto tempo furtado ao sono, desperdiçado em leituras e audições, quando bastaria estar diante de um televisor ligado, a jogar matraquilhos ou a fazer tocar campaínhas e fugir. O efeito ilustrador não haveria de ser tão diferente e o processo teria a vantagem de não deixar rasto para além do corpo. Seria uma solidão despojada, sem indícios, indolente. Segismundo.
Bloodnight. Cidade grande, madrugada, a cápusla automóvel cheia de Tom Waits. Um vulto obrigou-o a parar no túnel sob a avenida João XisXisI. O vultou ganhou forma de mulher, entrou no carro, sentou-se e disse, sei que isto não é um táxi, sou puta, sou fina e, sim, isto na minha cara é sangue, o que faz parecer que estou a mentir, mas não estou. Segismundo.
Vincent, cxxvi. © Tim Burton. Segismundo.
2003/2024 - danados (personagens compostas e sofridas por © Sérgio Faria).