2006-07-31
Reserva cinegética. Sobre este chão coutado chamado Portugal imagina-se um Estado. Uma ordem, portanto. De uma das criaturas que coloniza ocasionalmente o Estado lampejou a ideia da publicação de uma lista de refractários fiscais. A referida lista foi publicitada. Porém, curiosidade por curiosidade, eu prefiro saber quantos mastins há registados, se o seu boletim sanitário está actualizado e quem são os respectivos proprietários. Porque onde há mastins há rebanhos. E onde há rebanhos há ordenha. E onde há ordenha há quem mame. Nicky Florentino.
À sombra de um cedro. Nisto das guerras, Genève é sempre longe demais. Para complicar, الجمهوريّة البنانيّة é uma espécie de território sem parêntesis, tipo twilight zone sem fronteiras. Que seja. O hábito faz a besta e vice-versa, não é novidade ou causa de espanto. Mas há um problema na actual contenda bélica lá para as bandas de levante, naquele chão velho de gente. É que não se consegue perceber qual das partes da bulha é o Evander Holyfield e qual é o trinca orelhas. E perceber quem morde quem é uma coordenada vital, seja em que circunstância for, esteja ou não a cotação do crude em causa. Nicky Florentino.
Games without frontiers. O direito internacional é um parâmetro de comoção diplomática apenas. Para além disto ou é uma inexistência ou é um fingimento. Nicky Florentino.
Ray-Ban. A luz da manhã, a claridade pós-aurora, não converge com a disposição dos mal dormidos. Menos ainda com a disposição dos mal acordados. Segismundo.
2006-07-29
O rapaz que se apaixona por mulheres das páginas do tempo
# Um
Ele contou-me todas as suas tristezas, as pequenas, as assim-assim e as grandes. Estes são alguns dos pormenores do seu caso. Dito-os para arquivo, para que, como sumário, constem do respectivo processo.
Há dez anos, ele apaixonou-se exactamente no primeiro dia de Junho, logo de manhã, quando mudou a página do calendário. Aquela era a mulher para a sua vida, sentiu e desejou ele, mais do que pensou. Em consequência, o seu primeiro acto de expediente naquele dia foi escrever um pequeno bilhete de atenção à mulher do calendário, bilhete que nunca mereceu resposta. Em esperança, ele manteve a página do mês de Junho à mostra até ao último dia de Setembro. A um de Outubro, porém, desvairado por a sua paixão não ser correspondida, ingeriu uma dose exorbitante de barbitúricos e deixou o corpo deslizar, dormente, quase zombie, entre a marabunta da cidade. Sem amparo, convulso, caiu no chão. Foi levado para o hospital. Aí, para além da intoxicação devida à ingestão excessiva de comprimidos, diagnosticaram-lhe um ror de males de foro psíquico. Permaneceu internado e sob vigilância clínica apertada até ao final do ano passado. Quando regressou ao mundo, à ordem de fora, arranjou emprego numa pequena vulcanizadora. O seu trabalho é simples, desmontar e montar pneus de automóveis ligeiros, o que, afirma o seu patrão, ele faz com destreza. Aliás, todos os dias é o primeiro a chegar ao emprego. E desde o princípio do ano que o calendário junto ao seu posto de trabalho está na página do mês de Julho. Desta vez, dizem, ele apaixonou-se antes do tempo, não esperou pelos calores de verão. Eliz B.
# Um
Ele contou-me todas as suas tristezas, as pequenas, as assim-assim e as grandes. Estes são alguns dos pormenores do seu caso. Dito-os para arquivo, para que, como sumário, constem do respectivo processo.
Há dez anos, ele apaixonou-se exactamente no primeiro dia de Junho, logo de manhã, quando mudou a página do calendário. Aquela era a mulher para a sua vida, sentiu e desejou ele, mais do que pensou. Em consequência, o seu primeiro acto de expediente naquele dia foi escrever um pequeno bilhete de atenção à mulher do calendário, bilhete que nunca mereceu resposta. Em esperança, ele manteve a página do mês de Junho à mostra até ao último dia de Setembro. A um de Outubro, porém, desvairado por a sua paixão não ser correspondida, ingeriu uma dose exorbitante de barbitúricos e deixou o corpo deslizar, dormente, quase zombie, entre a marabunta da cidade. Sem amparo, convulso, caiu no chão. Foi levado para o hospital. Aí, para além da intoxicação devida à ingestão excessiva de comprimidos, diagnosticaram-lhe um ror de males de foro psíquico. Permaneceu internado e sob vigilância clínica apertada até ao final do ano passado. Quando regressou ao mundo, à ordem de fora, arranjou emprego numa pequena vulcanizadora. O seu trabalho é simples, desmontar e montar pneus de automóveis ligeiros, o que, afirma o seu patrão, ele faz com destreza. Aliás, todos os dias é o primeiro a chegar ao emprego. E desde o princípio do ano que o calendário junto ao seu posto de trabalho está na página do mês de Julho. Desta vez, dizem, ele apaixonou-se antes do tempo, não esperou pelos calores de verão. Eliz B.
fotografia 1996 © Peter Lindbergh e Pirelli
fotografia 2006 © Merl Alas, Marcus Piggot e Pirelli
fotografia 2006 © Merl Alas, Marcus Piggot e Pirelli
2006-07-28
Títulos que fazem uma vida, mas não todos os dias, lii. Le Fantôme de la Liberté. Segismundo.
Gato fedorento escondido com rabo de fora. Como notou o Ivan, o José voltou atrás, apagou o que escreveu. O que significa que, às vezes, no Abrupto autêntico também há um Abrupto
Coisas e regras. A vida é filhadaputa mais vezes do que se julga. Isto não é um eufemismo. Segismundo.
2006-07-27
Sombra e sol. No instante em que, por juízo ou por acto, alguém revela incapacidade de diferenciar, esse alguém padece de estupidez. E quando a estupidez de alguém se confronta com a estupidez de outrem, triunfa a estupidez de ambas as partes. Sim, é um facto que, perante a estupidez de outrem, a justiça é difícil. Mas é por isso que a justiça nem é expediente de talião nem é estupidez. É, sim, a capacidade de diferenciar, de intervir sobre o caso, sobre o detalhe. Para além disso, nenhuma segurança - segurança segura, passe o desassisado pleonasmo - se escora na estupidez. Nicky Florentino.
Almoço. Pode ser frémito, pode ser languidez. A única certeza é a dieta, carne vermelha de pasto verde. Segismundo.
2006-07-26
E não vice-versa. Um juízo de Foucault sobrepõe-se a um juízo de von Clausewitz. A política é a continuação da guerra por outros meios mais do que a guerra é a continuação da política por outros meios. Nicky Florentino.
Enrijar até ser duro como cornos. Pela própria condição, os inimigos fazem bem uns aos outros. A inimizade é uma forma de reciprocidade ou conjugalidade, mediante a qual os inimigos se fortalecem. Na prática, a inimizade é um modo de auto-sustento, por contradição. É por isso que, até ao instante da eventual aniquilação, a inimizade é preferível à amizade. Nicky Florentino.
D’estio. Limonada, da autêntica. Para aplacar os reacendimentos de infância, de menino e moço, largado, inocente, a aprender o mal. O bem vinha-lhe de casa, do sangue. A limonada equilibrava-lhe o ph. O gelo arrefecia-lhe a têmpera. Mas o calor era sempre tanto. Depois, onde é que está o menino?, a mãe, inquieta, fazia perguntas sobre ele. E, está a disparar sobre os gatos, com a pressão de ar, a irmã, mais velha, entregava-o, como cordeiro para a expiação da culpa. Segismundo.
O melhor preço. O caso é simples. O senhor eng.º Guedes, ele disse que se chamava eng.º Guedes, desejava um kit de punções de aço, daqueles modernos, com caracteres alfabéticos, para ferramentas de impacto pesadas. Durante a barganha, o senhor eng.º Guedes discutiu preço e desconto. Desejava o produto, bom e garantido, em aço do Ruhr, porém queria pagar o mínimo possível. Mas bom e barato não havia naquele empório onde se traficavam máquinas e ferramentas. Consequentemente o vendedor apresentou a sua melhor proposta, dez porcento de desconto por cada dedo das mãos que ele deixasse martelar. O Marquês.
2006-07-25
É o que é a vida filhadaputa. Tanta necessidade aborrecida! * Segismundo.
* “Tanta necessidade aborrecida!” é o verso quarto da estrofe centésima sexta do canto primeiro d’Os Lusíadas
Manifesto, sob Camões dixit. Isto, a centésimasexta estrofe do canto primeiro d’Os Lusíadas, é o que se pode dizer sobre o mundo e a vida lhadaputa que nele acontece.
No mar tanta tormenta e tanto dano,
tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
onde terá segura a curta vida,
que não se arme e se indigne o Céu sereno
contra um bicho da terra tão pequeno?
E pode acrescentar-se, apesar de tanta, há ainda pouca república. Nicky Florentino + Segismundo.
2006-07-24
A única das cores. Segundo Klein, o azul não é apenas o intervalo, o ponto de tensão, entre o invisível e o visível. O azul é o invisível metamorfoseando-se em visível. Daí a sua potência de impregnação. Daí a sua força de corte. Segismundo.
Dead man’s chest. Nada é pior do que o acaso. Que neste caso foi passar vezes e vezes e vezes pela janela do José e nunca ter testemunhado o tal falso Abrupto. Porca miséria. Segismundo.
2006-07-22
Arqueologia do mais intrépido dos super-heróis
Fascículo # 1
Querido diário, vou escrever nesta página a verdade, apenas a verdade, mas depois vou rasgá-la, para que ninguém fique a saber o segredo que te vou revelar. Vou fugir, sair de casa. Sei que vou preocupar a minha mãe, mais ainda, mas tem que ser.
Gosto de super-heróis. Ao princípio só me inclinava para heroizitos plausíveis. Em pequena apaixonei-me pelo meu Edu, o Jaime Eduardo de Cook e Alvega, mais conhecido como major Alvega. Foi uma paixão não correspondida. Sofri muito por isso. A minha mãe diz que eu sou louca, quando refiro estas coisas. Que ele, o meu Edu, era apenas uma personagem e que eu devia ter juízo, para não me apaixonar por gente de tinta em papel. Mas a minha mãe sabe lá o que é paixão ou heroicidade. A minha mãe não consegue sequer ser ousada. Está sempre a dizer, tem cuidado, tem muito cuidado, filha. E lava a loiça com luvas, para não melindrar as unhas, diz ela. Tem cuidado, tem muito cuidado... Eu não quero ter cuidado. Quero aventura, rua, estrada, gastar as garras. Também cheguei a apaixonar-me pelo Mandrake. Com este, no entanto, foi uma paixão pequena, passageira. Logo, logo, porque o Mandrake andava sempre com o Lothar e quase nunca usava os músculos, desinteressei-me. E passei a outra divisão. Nada de Batmans ou Spidermans ou Supermans – sei que correcto é escrever Batmen ou Spidermen ou Supermen, mas quero escrever assim, errado, diferente. E passei a outra divisão mais cool e underground. Depois também isso passou. A minha mãe internou-me, fui injectada para deixar de viver dentro de uma banda desenhada. Resultou até agora. Já sou maior do que as drogas que me receitam. Filho da puta do psiquiatra!, incapaz!, venci-o. Mas finjo que não, que, mentira, são ele e as merdas que ele prescreve que me comandam.
Seja como for, eu quero sair daqui, estou à espera de oportunidade, e isso preocupa muito a minha mãe, porque suspeita que eu ando com a mania de voltar para dentro de uma banda desenhada qualquer, da qual, após, não vou querer sair. É verdade. Confessei-lhe agora, há pouco tempo, que conheci o super-herói da minha vida, o Lobinho Nódoa. Ao princípio a minha mãe assustou-se e exclamou ó meu deus!, outra vez!, não pode ser! Mas depois, cheia de esperança, como todas as mães, ela sugeriu que talvez fosse reminiscência das campanhas publicitárias na televisão ao Presto, o detergente dos glutões. Ou, então, do Noddy, aquela figurinha desprezível tipo Pinóquio que não mente e a que não cresce o nariz, criado por Enid Blyton. Um natal qualquer ofereceram-me um boneco desses. Teve um único uso, nas minhas experiências de voodu. Piquei-o todo, todinho, com alfinetes. Por isso descoseu-se e, um dia, ficou com as entranhas expostas. Esponja apenas. Deitei o boneco no lixo. A minha mãe não sabe. Julga que foi alguém que o roubou. Deitei-o no lixo porque não gosto de recordar o natal. Para além disso, o Noddy sempre me pareceu repelente. Todo cheio de cores garridas e com um guizo na ponta do barrete. Bá!, que nojo. Mas tornando às reminiscências, eu respondi à minha mãe que não podia ser. Não lhe falei do Noddy e do destino que lhe dei, para não suscitar suspeitas. Falei-lhe da publicidade. Disse-lhe que eu apenas recordo os anúncios à pasta medicinal Couto e ao restaurador capilar Olex. Também recordo o homem da Regisconta e a conversa toda do coelhinho que vai com o pai natal e o palhaço no comboio ao circo. Mas dos glutões não tenho memória. A minha mãe insistiu, disse que a origem do caso pode ser mais abaixo e complicada, escondida lá nos fundilhos, nas catacumbas do juízo, tipo Freud explica. Não sei. Talvez seja. Mas o que quero que tu saibas, ó querido diário, é que eu tenho um novo super-herói, meu, só meu, todo meu. O Lobinho Nódoa. Não direi a mais ninguém. E à minha mãe vou dizer que o que lhe disse foi invenção minha, brincadeira. Acho que sou capaz de a convencer. Agora vou rasgar esta folha, para, depois, ir ver se encontro o meu super-herói.
Lobinho, u-u, bilu, bilu, onde estás? Aparece, estou em perigo. Aparece, chamo-me Deolinda.
Ao mesmo tempo que surgiu um espectro na parede, ouviu-se um uivo. Ela nunca mais se viu. Eliz B.
2006-07-21
Diga sessentaeum e repita. Estampada na edição de ontem do Diário de Notícias, a croniqueta do senhor dr. Ruben de Carvalho chamava a atenção para o recenseamento dos militantes dessa extraordinária federação chamada siglamente BE. A base da medida é Portalegre e os seus sessentaeum militantes. Em todos os demais distritos - e também nas regiões autónomas marinas - o número de militantes do BE é múltiplo de sessentaeum e no total, do país, os militantes são seismilecem. Tamanha coincidência não levanta qualquer suspeita. O que é extraordinário é a precisão das contas. Todas certas, todas bem feitas. O que significa que, para a rapaziada do Expresso - responsável pela referida contabilidade do número de militantes -, o BE é um partido político como qualquer outro partido político que é partido político. Nicky Florentino.
Inventário de (in)existências, i. Ela disse o amor é uma ficção. O outro ficou incomodado. O amor... uma ficção?, é uma ficção o caraças, o amor existe, reagiu. E assim continuaram em desacordo, ele quase aflito. De facto, o amor talvez seja uma ficção. Mas é justamente a ficção, porque existe, que lhe empresta realidade. Por isso, uma e outro provavelmente estavam mais em sintonia do que julgavam. O breu da noite e o desvio da cerveja é que já não lhes permitia mais do que o desacordo. Segismundo.
2006-07-20
O fim do mundo começa aqui, na pátria. Portugal não é muito diferente do Médio Oriente. Fazer exames por cá é tão difícil quão difícil é para um islamita radical admitir o Estado israelita e vice-versa. Uma questão de segurança, portanto. Nicky Florentino.
Das orientações, i. Aperfeiçoa-te no mal. A morte é um engano. E pode esperar. Segismundo.
Títulos que fazem uma vida, mas não todos os dias, li. Macunaíma o Herói sem Nenhum Caráter. Segismundo.
Das nove vidas para o fim, vii. A vertigem, a vertigem indicia a saída. Mas nunca indicia a porta. Segismundo.
2006-07-19
Paradigmas, ii e iii. O puto e o simpático. O puto, ó senhor, este filme tem monstros? O simpático, claro, tem monstros, com muito pêlo e muitas cores. O puto, ai ai. e são maus? O simpático, claro, são monstros. O puto, ai ai, ai ai. e o senhor não tem medo? O simpático, não, os monstros são meus amigos. O puto, ai ai, ai ai, ai ai. Segismundo.
Paradigmas, i. A gaja boa. Surgiu na ponta da rua. Bamboleava. Jingava. Sem hula hoop. A temperatura estava para chinelos ou sandálias, mas, nos pés, ela não estava com a temperatura. Calçava saltos altos. Ainda assim, pisava o chão como se ele abrasasse, em passos curtos. No mais percebia-se-lhe o calor no corpo. Mini-saia. Alças. O umbigo via-se intermitentemente, à cadência dos passos. Lançou o cabelo negro longo para trás com as mãos, uma, duas vezes. Não encarou o outro, simulou soberania. Olhou para o vidro para, pelo reflexo, perceber se o circunstante a desejava, se olhava para ela. Ele não revelou qualquer remorso, não olhou. Ela atenuou o ritmo dos passos. Quase deixou de jingar. Segismundo.
2006-07-18
O único de todos os princípios, por extenso. Se não se chamarem Deolinda, os monstros são nossos amigos. Segismundo.
Títulos que fazem uma vida, mas não todos os dias, hors-série. apontamentos para monstroário. ano i. Segismundo.
2006-07-17
Cogito, ii. A objectividade implica solidão. Por outras palavras, ser objectivo é ser solitário. De outro modo é-se contaminado pela(s) subjectividade(s) dos outros. Segismundo.
Cogito, i. Quem quiser ser objectivo que se torne faroleiro. Nesse ofício os contrastes, a terra, o mar, são evidentes. Os limites não são. Mas os limites, da terra e do mar, são um pormenor. Segismundo.
Das ordem e pedagogia. Cala-te! Ela olhou-o com espanto. Ele explicou-lhe o imperativo, se deus é deus, ouvirá as tuas súplicas pelo silêncio, ao mesmo tempo que lhe deu uma bofetada, para o imperativo lhe entrar melhor. O Marquês.
2006-07-16
O fim do mundo. Ele estarreceu quando a mãe do outro, o caído, o tratou pelo nome próprio, porque, suspeitava, era suposto a senhora mal saber da sua existência e desconhecer o catálogo das suas necedades. Tudo isto, afinal, era ilusão. A fama, ó desgraça, vem-lhe de longe. E sabe-se lá até onde alcança. Segismundo.
2006-07-15
Um de todos. Hoje pela primeira vez um dos três mosqueteiros cai de manso. Cai amparado, com companhia. A culpa é de uma mulher. Mas ele, soberano, consentiu. Começa a era da almofadas. Segismundo.
O livro das fugas
ii. A esquiva
Grito hemorragia!, hemorragia! e olham-me com espanto. Não derramo sangue, não agonizo. Dou pulos, dou saltos, aviso. Afio o gume da lâmina. Dou cambalhotas e faço acrobacias com as mãos. Continuam a olhar-me com espanto, como se fossem testemunhas da transubstanciação, em mim, do juízo em loucura. Apenas ela se aproxima e diz sossega, estou aqui, venho buscar-te. Reajo, mas quem és tu?, eu não te reconheço. Depois grito, grito sobretudo para os outros, sou uma pedra de xadrez!, pedra de carne!, não jogo à macaca! Dou um passo atrás, afastando-me dela, e digo-lhe foge, foge que eles vêm aí agora, estão a aproximar-se, foge antes que te embarguem. Mas ela fica e estende-me a mão, disposta a colher-me, parecendo expressar uma cumplicidade através do gesto que não sei se é cumplicidade. Os outros, não obstante a aproximação, permanecem a uma distância significativa. Então clamo epidemia!, epidemia! E ela repete sossega, estou aqui, venho buscar-te. Mas eu não me entrego. Também não vou com os outros. Simulo a corrida, saio. Eliz B.
2006-07-14
Títulos que fazem uma vida, mas não todos os dias, l. Dogerville ou le Criminel par Vertu. Segismundo.
A sagração sobre a grei. Portugal profundo, Portugal superficial. Lengalenga tipo bic laranja, bic cristal. Sugere-se que o Portugal profundo é mais autêntico, onde o calor é maior, o frio também. Onde a paisagem é bucólica e rústica, terra e mais terra, floresta e mais floresta, serranias, planaltos, planícies, baixa densidade corporal. Próximo dos homens há animais, muitos, soltos. Sugere-se que o Portugal superficial é incaracterístico, modo bolsas de civilização indiferenciadas. O Portugal superficial não é agrário, é urbano, depressivo, asfalto e betão, acelerado, plural, com mais cores e sons, a maior parte resultantes de artifício. Aí a densidade corporal é maior e os animais são menos, pelo menos na sua variedade, e fechados. Julga-se que o ciclo solar regula os processos no Portugal profundo. No Portugal superficial é sempre luz, a noite confunde-se com a manhã e a tarde. É por isso que Portugal, enquanto Portugal, não existe e, pela sensação, acontece como um pêndulo sobre nenhum chão exacto. A emigração, se deus insistir em não querer e o suicídio falhar, é a salvação. Segismundo.
Credenda. Há um princípio do qual não se deve abdicar, saudar apenas quem em quem se acredita. Os outros, deus incluído, podem ser mais, mais em tudo. Mas, por uma simples questão de credo, é como se não fossem. Segismundo.
2006-07-13
Carta de (ar)rumos. Convém olhar as bestas de frente, topo a topo, sem renúncia. Houve até quem tivesse escrito, “Era um Deus oculto, cheio de sigilo. Em verdade, até foi unicamente por caminhos escusos que ele conseguiu um filho. À porta da sua fé, encontra-se o adultério”*. É esta a origem e é este o caminho da imagem e da semelhança. Segismundo.
* Nietzsche, Friedrich (1883, 1996), Assim Falava Zaratustra, Lisboa, Relógio d’Água Editores, p. 303.
Wor(l)ds (acrescento). O mundo é outro? Talvez não seja. Talvez o mundo seja o mesmo, como as palavras são as mesmas. Mas é diferente, o mundo, como as palavras, as que falham. Ou talvez não. Provavelmente o mundo é o mesmo. O rumo nele, o sentido, é que é outro. Segismundo.
Wor(l)ds. Às vezes as palavras falham. Falham, assim mesmo. Mas não falham por falharem. Não falham por motivos gramaticais ou ortográficos. Não falham por faltarem ou por se ficar sem palavras. Falham por terem outro significado. Falham por abafarem o silêncio, por não o dizerem como silêncio. Falham. Falha-se com elas. E, por isso, o mundo é outro. Segismundo.
2006-07-12
Títulos que fazem uma vida, mas não todos os dias, xlix. All Lights Fucked on the Hairy Amp Drooling. Segismundo.
Das nove vidas para o fim, vi (paralelo como dúvida). A operação é as mãos sobre a matéria. Subsiste a dúvida sobre que factor é o multiplicando, se as mãos, se a matéria, e que factor é o multiplicador, também se um, se outro. O facto de, em abstracto, a operação admitir a comutatividade dos factores não permite prescindir da dúvida. Porque suspeita-se que, no regime da manufactura, o produto de mais mãos sobre a mesma matéria não é equivalente ao produto de as mesmas mãos sobre mais matéria. Segismundo.
Das nove vidas para o fim, vi. As mãos sobre a matéria. O que sobrar será o produto, produto do factor mãos pelo factor matéria, produto acabado, porém nunca final. Segismundo.
Hermes, o filho do serralheiro mecânico. Naquela manhã acordou com uma particular simpatia por berbequins. Não porque desejasse fazer buracos. Mas porque desejava furar alguém. O Marquês.
2006-07-11
Resquiat in pace. Da série Six Feet Under há um episódio que se sobrepõe na memória dele. Por uma cena. Provavelmente o motivo de tal sobreposição é estúpido. Mas, que fazer?, ficou-lhe a sensação, o resíduo, que tudo se condensa num lance, numa cena, aquela cena. Claire, juntamente com Anita, pinta na parede do seu quarto a frase terror starts at home. Depois, drogada, desce para jantar com a família, que celebrava o aniversário de David. O que lhe pareceu a vida, intervalo de limites contigentes, simultaneamente enunciada como contágio e concerto. O sangue e a hipótese da hemorragia, por um lado, e o edifício já feito que tende a dispor à coabitação, por outro lado. Segismundo.
imagens © Home Box Office
Ironia dissolvente. Ele começa a duvidar. Em rigor não começa, estende a dúvida. O que é preferível?, viver dentro de uma banda desenhada? ou ser uma polaroid? Segismundo.
Os feitos e os defeitos de Lazy González, ix. Em todas as coreografia da vida aproveito para pisar pés e, às vezes, também mãos. Isso alivia-me, disse Lazy González, no instante em que foi atraído pelo som de zarzuela que soava na vila. As escoriações na carne dos outros estavam anunciadas. O Marquês.
2006-07-10
Há faena e fanecas no hectare, xxxiii. Na fase final do campeonato do mundo de futebol que expirou ontem, o número dez rimou apenas com um nome, Zinédine Zidane. Conde Isidoro.
imagem © Valéry Hache / AFP
Há faena e fanecas no hectare, xxxii. A puta da indignação é fácil. Zizou deu uma cabeçada no peito de Materazzi. Isso é evidente. Mas o que é que o italiano disse a Zinédine? Quase ninguém parece interessado em saber. A maioria contenta-se com a evidência da violência física observada. A violência física é violência e vê-se. A violência verbal é apenas provocação - portanto, não violência - e não se vê. A estupidez alimenta-se por este tipo de roteiros insensíveis. Apenas pelo que os olhos vêem. Como se os demais sentidos tivessem sido capturados. Como é óbvio, nada disto absolve Zidane ou faz esquecer a sua (re)acção. Também não necessita. Ontem marcou um penalty com a elegância e a economia própria apenas de quem joga futebol com os deuses e vence. Buffon para um lado, bola para o outro, a ultrapassar a linha quase apenas na medida do respectivo diâmetro. Isto os olhos esquecem. Os olhos não são um órgão de recordações. É por isso que o juízo carece de provas, de documentação. Os sôfregos, os incapazes de memória, apenas manifestam indignação pela cabeçada de Zidane no peito de Materazzi. Pobres coitados. Jamais farão história. Ou, melhor, farão apenas a história deles. Provavelmente tão pequena quão limitada é a informação com base na qual sustentam a sentença no caso. Reitero, como é óbvio, nada disto absolve Zidane ou faz esquecer a sua (re)acção. Também não é necessário. Conde Isidoro.
imagens © AFP e Michael Dalder / Reuters
Títulos que fazem uma vida, mas não todos os dias, xlviii. Cet Obscur Objet du Désir. Segismundo.
Batota spleen. É provável que após um demorado envolvimento no jogo dos enganos a criatura enganadora consiga também enganar-se a si mesma. Porque a inércia, um dos nomes indolores da estupidez, é uma força extraordinária. Segismundo.
2006-07-09
Há faena e fanecas no alguidar, xviii. Foi bonito ver a expressão
2006-07-08
Paralelos a há faena e fanecas no hectare, xvi. Futebol é apenas futebol. Esquecer esta evidência ou é produto de confusão ou é gerador de confusão. Ao hectare o que é do hectare. À vindima o que é da vindima. À faina o que é da faina. À cata de pulgas o que é da cata de pulgas. À tristeza o que é dos tristes. Futebol é apenas futebol. Bola. Conde Isidoro.
Há faena e fanecas no hectare, xxxi. Há quem pergunte: quem é Bastian Schweinsteiger? E por que é que ele em vez de rematar de longe não marca penalties? Conde Isidoro.
imagem © AFP
A presença é uma posição de sentido único. O futuro é um gajo estranho e não é sempre o senhor vestido que se segue. Segismundo.
imagem © Giacomo Balla - Il Vestito Antineutrale. Manifesto Futurista (Milano, 11 de Setembro de 1914)
O livro das fugas
i. A diferença
A liberdade é o outro lado, disse Donato. Mas, reagiu Leopoldo, às vezes é sobre o limite da liberdade, no limiar que separa e encontra este e o outro lado, que é bordada a vida. Donato pensou durante um instante sobre o significado de tais palavras. Embora não concordasse com o seu interlocutor, procurou um ponto de intercessão com ele. Concorda comigo, então, num pormenor: a paisagem da liberdade é composta por dois lados, desafiou Donato. Leopoldo, sim, concordo, anuiu. Mas, acrescentou de imediato, no entanto, a paisagem da liberdade não é composta apenas por esses dois lados. Para além dos lados, um e outro, há necessariamente o que os faz, há a linha que os aparta. E essa linha é ainda território possível de vida, de liberdade. Donato tinha dificuldade em acompanhar o raciocínio do companheiro. Sabia pela sua prática que o fulgor dos livres lhe chegava quando se atrevia a ir para além do que estava estabelecido. A condição de solto sentia-a quando se livrava das convenções e calcorreava domínios que, aplacados pelos medos ou pelos modos, outros não ousavam pisar. Por isso, não consigo compreender o alcance da sua lucubração, insistiu Donato. Para mim, a liberdade é depois dessa linha, porque antes é o cativeiro. O que significa que essa linha é como uma porta. Vista de cá é a saída para a liberdade, vista de lá é a entrada para o cativeiro. Daí que essa linha não seja, por não poder ser, chão de liberdade, mas seja uma zona de transição ou, se preferir, uma twilight zone. Fez-se um longo silêncio de desacordo entre ambos. Continuaram a andar, marcando Leopoldo a direcção, o sentido e o ritmo dos passos. Ao aproximarem-se do limite do campo, Donato começou a sentir o apelo do outro lado. O sopro selvagem que residia nele havia despertado. Leopoldo logrou sustê-lo ali, embora caldeasse em Donato uma vontade indómita de liberdade. Leopoldo disse, olhe, vê?, apontando para um pormenor da cerca que estava diante deles. Donato confirmou, vejo. Ambos, detidos, olhavam um segmento do arame tenso que marcava o interior e o exterior daquele campo. Vê?, continuou Leopoldo, o mesmo detalhe que nos pode rasgar a carne, a farpa, é também o apoio para outros fios. Como a aranha fez, é possível trabalhar o limite - que é diferente de trabalhar sobre o limite -, utilizando-o para estender a liberdade. Na prática, ao trabalhar-se o limite, o que para alguns parecerá apenas submissão, é possível almofadar e, assim, anular o que é aguilhão e motivo de dor para o nosso corpo. Leopoldo tornou a apontar para o pormenor que observavam, como que a antecipar a confirmação das suas palavras, trabalhar o limite, no limite, torna possível tecer e suportar um edifício, uma vida. Donato discordou, isso seria possível se fôssemos pequenos como um insecto, mas, como não somos, não é possível. Leopoldo tentou encontrar-se com o argumento do outro, falta-nos crescer, não é?, para conseguirmos ser mais pequenos, de um tamanho livre. Donato não respondeu. Entretanto intensificara-se-lhe mais ainda o instinto e, súbito, saltou para o outro lado. Correu. Naquele momento Leopoldo ficou atónito. Depois, já recuperado da admiração, assentou de modo firme as mãos sobre o arame farpado, apertou-as para ali sentir-se seguro, e ficou a testemunhar a fuga de Donato. Enquanto ele se afastava, Leopoldo começou a sentir as suas mãos a aquecer. O sangue escorria. Um vulto desvanecia-se no horizonte. Eliz B.
2006-07-07
Revisitação das origens em relíquia. Diga-se assim, à bruta, a carcaça do fundador que se foda. E que se foda em dois sentidos. No sentido do «ai que interessante saber que eventuais maleitas padeceria o dom Afonso Henriques», implicado no propósito da exumação. E no sentido do «alto! e abra-se um inquérito, porque eu quero mandar», ditado pela senhora ministra da causa. Esta ditosa pátria é a pátria das tristes figuras. Que venham os incêndios ou os eucaliptos. A fauna autóctone merece. Nicky Florentino.
Títulos que fazem uma vida, mas não todos os dias, xlvii. Amar, Verbo Intransitivo. Segismundo.
Escala de Sísifo, ii. Há momentos de torrente. Sente-se uma espécie de ausência e a mão a corresponder e a executar frases exactas e conexas, sem necessitarem de reparo posterior. Esses momentos são momentos falsos. O corpo empresta amparo mediúnico, concedendo expressão a uma energia cuja origem se desconhece, se telúrica, se sideral. A mão corresponde como um cavalo. Elegante, em trote veloz, certo o chão, certo o ritmo. Pasma o encontro, a sintonia, o arrumo das palavras. Tudo exacto, como se fosse uma pulsão orgânica conduzida por algo transcendente. A sensação é excessiva, mas é essa a sensação. Tornam-se irrelevantes os casos inscritos na agenda do foro de fora. A mão galga. Rapidamente ultrapassam-se alguns dos impasses registados em tantas páginas, folhas, entregues à pendência da espera, do retorno. Pela mão a irreverência, a insolência também, a insolvência, a incoerência. De permeio são vertidos e gravados poemas, mais textículos, ensaios. Esboçam-se composições, arriscam-se formas. A mão corre, mas falha. A torrente é mais forte. Quando tudo se tenta compreender, registar, falham os braços também. Perante a vertigem, são sem alcance e ritmo suficientes. E começam a perder-se e a apagar-se palavras, primeiro, e frases, depois. Há um proveito de salubridade na demora, na incapacidade de corresponder. Porque a mão tarda, vinga o branco, o silêncio escrito, a voz apagada no papel. Segismundo.
2006-07-06
Solta o hoolingan que há em ti, iii. No domingo, que les bleus se fodam contra a squadra azzurra. Conde Isidoro.
Escala de Agave, vi. É provavelmente um segredo. Também pode ser um engano ou um modo de insânia. Assim, “Dei um nome à minha dor e chamo-lhe «cão» - ela é tão fiel, tão importuna e desavergonhada, tão divertida, tão esperta como qualquer cão - e eu posso dominá-la e descarregar nela as minhas más disposições: como outros fazem com os seus cães, criados e mulheres”*. Segismundo.
* Nietzsche, Friedrich (1878, 1996), A Gaia Ciência, Lisboa, Relógio d’Água Editores, § 312, p. 229.
Ofício de engano. O corpo já lá não está. Não está o corpo, mas está um resíduo seu. E esse resíduo, pela sombra da presença, pelo eco da voz, é arquivo suficiente do que lá esteve. São estes registos de passado que não permitem a ilusão, a perda definitiva. Segismundo.
2006-07-05
Há faena e fanecas no alguidar, xvii. Afinal a virgem de Caravaggio é a morta, não a de Farroupilha. Conde Isidoro.
imagem (pormenor) © Michelangelo Merisi, also known as Caravaggio
Há faena e fanecas no alguidar, xvi. Ou Domenech reconhece o malabarismo fingido por Henry - e, portanto, que os franceses beneficiaram de um penalty indevido - ou não é diferente de um cão que ladra e, mesmo por mímica, não sabe o que é mergulhar no hectare. E alguém como um cão assim ou é cão ou não tem carácter. Conde Isidoro.
imagem © AFP
Há faena e fanecas no hectare, xxx. Não obstante todas as contingências, no futebol a diferença resulta sempre de um caso padrão, a bola na rede. Conde Isidoro.
imagem © Nicolas Asfouri / AFP
Há faena e fanecas no hectare, xxix. Ontem, em conferência de imprensa, Thuram aludiu à propensão dos portugueses a mergulhar no campo. Hoje aconteceu que o mergulhador farsante e com proveito foi Henry. Depois do toque no pé por Ricardo Carvalho, Henry assentou esse mesmo pé no relvado e utilizou essa base para projectar o corpo, simulando uma falta. O árbitro engoliu. Os franceses também. Zizou não merecia ter marcado o penalty cuja origem foi a impostura de um companheiro seu. Porque ao converter a penalidade máxima caucionou o jogo cobarde da sua equipa. Conde Isidoro.
imagem © Valéry Hache / AFP
Há faena e fanecas no hectare, xxviii. Sim, é um facto que os franceses ganharam vantagem no marcador através da cobrança de um penalty sem fundamento. Mas esse é apenas um dos momentos do processo da partida de futebol que aconteceu. Hoje, como no sábado contra os ingleses - quando estes passaram a ter menos um homem em campo -, os portugueses jogaram sessenta minutos sem revelarem capacidade para dar a volta ao resultado. Scolari, esse génio da bola, não teve antídoto para o jogo poltrão dos franceses. Os jogadores meteram as mãos à cabeça. O destino vinha lá. A capacidade de intervenção a partir do banco, essa, não. Conde Isidoro.
imagem © AFP
Escala de Walden, ii. Há uma fábula escrita assim, “Temo que os animais considerem o homem como um ser da sua espécie que perdeu o senso comum animal de forma extremamente perigosa, como o animal alucinado, o animal que ri, o animal que chora, o animal desditoso”*. Segismundo.
* Nietzsche, Friedrich (1878, 1996), A Gaia Ciência, Lisboa, Relógio d’Água Editores, § 224, p. 175.
Saudadela. O mais que reúne os conjuntos de grande dimensão é sobretudo a imaginação. Não é o lastro popular, o mesmo corpo. Não é um chão. Não é um tempo. Não é uma língua. Não é uma bandeira. Não é um ícone. É, sim, a herança e o projecto dessa imaginação e a manipulação de todos aqueles elementos numa narrativa identitária. Por isso é tão ténue quão visceral. Por isso é tão vaga quão evidente. Por isso por quase nada se levanta e nutre o assanho. Porque embora pouco e simbólica suporta diferenças que o tempo elide, se elidir, em erosão lenta. Segismundo.
2006-07-04
Há faena e fanecas no hectare, xxvii. Iô. Há quem julgue que os impasses no futebol se resolvem na lotaria um dó li tá dos penalties. Hoje os italianos foram capazes de demonstrar que esse juízo é teoria. E futebol é prática, dança, caça, batalha. Conde Isidoro.
imagem © AFP
O fungagá. É pungente todo este folclore de palavreado e fotografias aqui exposto sobre redes, bola e homens. Este tugúrio sempre se pautou por uma discrição em relação às mortes e ao futebol. Nunca devia ter deixado de ser assim. Já aqui havia O Marquês, não era necessário um conde. O que é que virá a seguir?, alguém com o nome Deolinda? Segismundo.
2006-07-03
Há faena e fanecas no alguidar, xv. A banalização do futebol gera um problema, todos se julgam habilitados para dissertar sobre o fenómeno. O senhor Prof. Doutor Marcelo Rebelo de Sousa a glosar sobre bola não é muito diferente de uma avestruz armada em carapau de corrida. Se as intervenções do fulano são parte de um jogo de pau com ursos, deveria a teelvisão assinalar expressamente esse facto. Caso contrário, a sobriedade recomenda apenas os comentários de Humberto Coelho. Que, no passado sábado, ia a partida entre ingleses e portugueses já para além dos vinte minutos, conseguiu articular estas palavras: tudo pode acontecer, tudo é relativo. Mas só irá haver golo na sequência de um lance de bola parada - lance de bola parada é outra das expressões estúpidas usadas nos meandros futebolísticos - ou de um falhanço na zona defensiva de qualquer uma das equipas. Querem lá ver que o homem é bruxo. Conde Isidoro.
Solta o hoolingan que há em ti, ii. O azul digno diz-se ao modo de Camões, azul, não ao modo de Camus, bleu. Às vezes também pode dizer-se blue, blues, blau, em todas as variantes escandinavas, eslavas ou até mais exóticas, tipo tupi-guarani. Não, nunca, bleu. O superlativo do azul digno é o azul e branco. Não, nunca, o bleu, o blanc e o rouge. Aliás, a única associação legítima entre o azul e o tom de sangue é o matiz blaugrana, catalão. Por isso, allez blues é mera converseta de avecs e passé composés. Conde Isidoro.
A estupidez do cerco. O outro, sim, sim, social-democrata, como o Einstein. Ele, Einstein não, Bernstein. O outro, exacto, como o Bernstein. Ele, mas o Leonard? ou o Eduard? O outro, o Leonard, claro, porque o Eduard não conheço. O diálogo terminou naquele instante, cerce. Pois, nunca fiando, não quis ele arriscar que algum dos concertos para violino de Chopin se tornasse audível. Segismundo.
Escala de Hobbes, ii. Estava cansado para ser. Por isso escreveu no meu reino sou o único leopardo, sou o único falcão e imaginou isso verdade. Segismundo.
2006-07-02
Solta o hoolingan que há em ti, i. A elegância futebolística de زين الدين زيدان - este é outro modo de grafar o nome de Zinédine Yazid Zidane - não é suficiente para fazer esquecer raivas antigas e nomes como Joël Bats, Manuel Amoros, Battiston, Maxime Bossis, Domergue, Luis Fernandez, Giresse, Platini, Tigana, Dominique Rocheteau ou Didier Six. Por isso, na próxima quarta-feira, contra os franciús, os rapazes ou honram a memória e consumam vingança ou são apenas uma cambada de connards. Conde Isidoro.
Ponto de interrogação. Às vezes as palavras são uma espécie de perseguição. Pergunta-se porquê?, mas o que se quer não é a resposta, é o motivo. Sabe-se lá... não satisfaz. Segismundo.
2006-07-01
Há faena e fanecas no hectare, xxvi. Zinédine não se vê, mas passou por aqui. Conde Isidoro.
imagem © Christophe Ena / AP Photo
Há faena e fanecas no hectare, xxv. Espectros, fantasmas e simulacros não vencem no futebol. Conde Isidoro.
imagem © Michael Dalder / Reuters
Há faena e fanecas no alguidar, xiv. O futebol é um jogo colorido. E o Rooney, naquele lance em que atingiu a peça de virilidade de Ricardo Carvalho, comportou-se como autêntica besta. Conde Isidoro.
imagem © Martin Rickett / AP Photo
Paralelos a há faena e fanecas no hectare, xv.ii. Parte significativa da estética do futebol é a representação trágica dos homens no chão, caídos, vergados, prostados. Conde Isidoro.
imagem © AFP
Paralelos a há faena e fanecas no hectare, xv.i. Parte significativa da estética do futebol é a representação dos homens no chão. Conde Isidoro.
imagem © Patrik Stollarz / AFP
Paralelos a há faena e fanecas no hectare, xiv. Os números sete, Beckham e Figo, já tiveram melhores dias do que hoje. Um chorou, como o Cristiano Ronaldo chorou no passado domingo. No futebol os homens choram. É essa umas das autenticidades da bola. Conde Isidoro.
imagem © AFP
Há faena e fanecas no hectare, xxiv. Para além da euforia. A partida entre ingleses e portugueses durou centoevinte minutos. Durante metade desse tempo houve mais um tuga em campo do que os súbditos da majestade da ilha. Porém, os lusitos conseguiram vantagem apenas no espaço concedido pelos ingleses. Resultado, o Ricardo defendeu os remates de Lampard, Gerrard e Carragher. O Hugo Viana rematou ao poste. O Petit fez outra coisa qualquer. Enfim, Scolari foi uma nódoa magenta. Mas ninguém notou. Conde Isidoro.
imagem © AFP
Há faena e fanecas no alguidar, xiii. Futebol é apenas futebol. Mas há sempre quem, um qualquer beócio, entenda acrescentar-lhe algo pelos mais variados motivos ou com os mais diversos propósitos. As rezas, como por exemplo
Lembrai-vos, ó puríssima virgem Maria,
que jamais se tem ouvido que deixásseis
de socorrer e consolar a quem vos invocou,
implorando a vossa proteção e assistência;
assim pois, animado com igual confiança,
como a mãe amantíssima, ó virgem das virgens,
a vós recorro, de vós me valho,
gemendo sob o peso de meus pecados,
humildemente, me prostro a vossos pés.
Não rejeiteis as minhas súplicas,
ó virgem de Caravaggio,
mas dignai-vos de as ouvir propícia
e de me alcançar a graça que vos peço.
Amém,
são um desses acrescentos. Nada acrescentam, mas há quem julgue que sim. No limite vale o argumento «se bem não faz, mal também não faz». E por via da dúvida, porque as cautelas nunca são demais e a alma aliviada é outra coisa, lá se debita uma prece a condizer. Valha-nos são Jorge. Ou será que hoje é mau dia para invocar tal padroeiro? Conde Isidoro.
O livro das trevas
i. O lado de lá da noite
De manhã, quando acordavam, os habitantes daquele lugar encontravam as ruas limpas. Nunca esse facto os intrigou ou lhes suscitou curiosidade até que um dia
entre todos os dias, aconteceu ser naquele, igual a qualquer outro, mas diferente porque foi justamente nesse dia que
alguém anunciou ser isso um mistério e não natureza. É um mistério, mas não é um mistério qualquer. Minhas senhoras e meus senhores, é um mistério do arco da velha, declarou dom Lázaro, a maior das autoridades do lugar.
fosse ou não fosse um mistério do arco da velha e fosse ou não fosse a noite o arco da velha
Todos ou quase todos ficaram sobressaltados pela apresentação do caso nestes termos. Por isso, reunidas em conselho, decidiram as almas superiores dali que, por forma a abreviar a angústia do povo,
o povo, sempre o povo, o nosso povo, em nome do qual e para segurança do qual tudo se decreta foi decretado que
fosse investigado e dissipado tal mistério. Dom Lázaro, como lhe competia, anunciou publicamente essa decisão. De imediato surgiu uma dificuldade, encontrar quem se atrevesse a entrar na noite e a calcorrear as ruas como observador da causa do mistério. É que naquele lugar havia apenas dois tipos de gente acordada durante a noite. Havia os que amanhavam e coziam o pão, os padeiros. E havia o louco, Benevenuto, conhecido como filho da meia noite, que, entre outras loucuras, dizia haver pessoas que viviam acordadas sob o luar, pessoas que, porque dormiam durante o dia, os outros nem conheciam nem viam. Por motivos óbvios,
talvez os motivos não fossem óbvios, mas eram motivos e por isso
o louco não foi considerado alguém a quem pudesse ser confiada tão delicada missão. Quanto aos padeiros, embora acordados durante a noite, eles tinham que trabalhar, pois ninguém dispensava o pão fresco pela manhã. Aurora em que não houvesse pão quente para barrar com manteiga seria certamente má aurora. Aliás, nenhum habitante do lugar, do mais velho ao mais novo, alguma vez ouvira falar de acontecer uma manhã, diferente da manhã de domingo, em que não tivesse havido pão acabado de cozer.
para além disso, ainda que nocturnos, os padeiros eram acordados apenas entre paredes e sob telhado e jamais saíam à rua antes de o sol raiar
Perante estas contingências, os notáveis do lugar acabaram por convocar alguém credenciado, o detective. Nada de extraordinário demandaram a Constantino, assim se chamava o detective. O que lhe pediram foi que sob o período de luar aplicasse as mesmas técnicas e os mesmos métodos de investigação que aplicava quando o sol dourava e, assim, deslindasse o mistério, aquele mistério.
o quê ou quem, o que raio é que limpava as ruas durante a noite, se era o vento, se eram fantasmas, se eram animais, queriam saber os habitantes daquele lugar
Constantino, moço intrépido, acatou a missão. Nesse mesmo dia, depois de jantar, despediu-se da mãe, que evitou o pranto mas não a inquietude,
porque desde o crepúsculo, na casa de cada família, eram cerradas as portas e as janelas para evitar que a escuridão entrasse, julgando, quem se guardava assim, que desse modo se evitava a sua contaminação pelo obscurantismo
e saiu para as trevas nocturnas. Não precisou de muitas noites para fazer e dar por concluída a investigação. Na manhã do que seria o quarto dia de inquérito, Constantino regressou, encontrou-se com o colégio das autoridades do lugar e, comunicando em termos resumidos o relatório da investigação e os respectivos resultados, disse-lhes quem limpa as nossas ruas são umas criaturas estranhas. Os outros quiseram saber mais pormenores, criaturas estranhas?, estranhas como? O detective respondeu-lhes por acto e por palavras. Por acto entregou uma série de polaroids e por palavras disse estranhas como nós. Depois, embora o dia já fosse claro,
as ruas estavam limpas
foi dormir. Eliz B.
2003/2024 - danados (personagens compostas e sofridas por © Sérgio Faria).