Arqueologia do mais intrépido dos super-heróis
Fascículo # 1
Querido diário, vou escrever nesta página a verdade, apenas a verdade, mas depois vou rasgá-la, para que ninguém fique a saber o segredo que te vou revelar. Vou fugir, sair de casa. Sei que vou preocupar a minha mãe, mais ainda, mas tem que ser.
Gosto de super-heróis. Ao princípio só me inclinava para heroizitos plausíveis. Em pequena apaixonei-me pelo meu Edu, o Jaime Eduardo de Cook e Alvega, mais conhecido como major Alvega. Foi uma paixão não correspondida. Sofri muito por isso. A minha mãe diz que eu sou louca, quando refiro estas coisas. Que ele, o meu Edu, era apenas uma personagem e que eu devia ter juízo, para não me apaixonar por gente de tinta em papel. Mas a minha mãe sabe lá o que é paixão ou heroicidade. A minha mãe não consegue sequer ser ousada. Está sempre a dizer, tem cuidado, tem muito cuidado, filha. E lava a loiça com luvas, para não melindrar as unhas, diz ela. Tem cuidado, tem muito cuidado... Eu não quero ter cuidado. Quero aventura, rua, estrada, gastar as garras. Também cheguei a apaixonar-me pelo Mandrake. Com este, no entanto, foi uma paixão pequena, passageira. Logo, logo, porque o Mandrake andava sempre com o Lothar e quase nunca usava os músculos, desinteressei-me. E passei a outra divisão. Nada de Batmans ou Spidermans ou Supermans – sei que correcto é escrever Batmen ou Spidermen ou Supermen, mas quero escrever assim, errado, diferente. E passei a outra divisão mais cool e underground. Depois também isso passou. A minha mãe internou-me, fui injectada para deixar de viver dentro de uma banda desenhada. Resultou até agora. Já sou maior do que as drogas que me receitam. Filho da puta do psiquiatra!, incapaz!, venci-o. Mas finjo que não, que, mentira, são ele e as merdas que ele prescreve que me comandam.
Seja como for, eu quero sair daqui, estou à espera de oportunidade, e isso preocupa muito a minha mãe, porque suspeita que eu ando com a mania de voltar para dentro de uma banda desenhada qualquer, da qual, após, não vou querer sair. É verdade. Confessei-lhe agora, há pouco tempo, que conheci o super-herói da minha vida, o Lobinho Nódoa. Ao princípio a minha mãe assustou-se e exclamou ó meu deus!, outra vez!, não pode ser! Mas depois, cheia de esperança, como todas as mães, ela sugeriu que talvez fosse reminiscência das campanhas publicitárias na televisão ao Presto, o detergente dos glutões. Ou, então, do Noddy, aquela figurinha desprezível tipo Pinóquio que não mente e a que não cresce o nariz, criado por Enid Blyton. Um natal qualquer ofereceram-me um boneco desses. Teve um único uso, nas minhas experiências de voodu. Piquei-o todo, todinho, com alfinetes. Por isso descoseu-se e, um dia, ficou com as entranhas expostas. Esponja apenas. Deitei o boneco no lixo. A minha mãe não sabe. Julga que foi alguém que o roubou. Deitei-o no lixo porque não gosto de recordar o natal. Para além disso, o Noddy sempre me pareceu repelente. Todo cheio de cores garridas e com um guizo na ponta do barrete. Bá!, que nojo. Mas tornando às reminiscências, eu respondi à minha mãe que não podia ser. Não lhe falei do Noddy e do destino que lhe dei, para não suscitar suspeitas. Falei-lhe da publicidade. Disse-lhe que eu apenas recordo os anúncios à pasta medicinal Couto e ao restaurador capilar Olex. Também recordo o homem da Regisconta e a conversa toda do coelhinho que vai com o pai natal e o palhaço no comboio ao circo. Mas dos glutões não tenho memória. A minha mãe insistiu, disse que a origem do caso pode ser mais abaixo e complicada, escondida lá nos fundilhos, nas catacumbas do juízo, tipo Freud explica. Não sei. Talvez seja. Mas o que quero que tu saibas, ó querido diário, é que eu tenho um novo super-herói, meu, só meu, todo meu. O Lobinho Nódoa. Não direi a mais ninguém. E à minha mãe vou dizer que o que lhe disse foi invenção minha, brincadeira. Acho que sou capaz de a convencer. Agora vou rasgar esta folha, para, depois, ir ver se encontro o meu super-herói.
Lobinho, u-u, bilu, bilu, onde estás? Aparece, estou em perigo. Aparece, chamo-me Deolinda.
Ao mesmo tempo que surgiu um espectro na parede, ouviu-se um uivo. Ela nunca mais se viu. Eliz B.