2007-07-31
Mulherzinhas à beira de um ginásio. Um rapaz não é um animal territorial. É territorial apenas. Certas necessidades suas obrigam a reserva, espaço. Estacionar o carro é uma dessas necessidades. Outra é andar a pé, em sossego, sem ter que fazer slalom entre as carretas que as meninas e algumas senhoras donas estacionam como se, junto ao ginásio, com instalações encavadas numa ruela, o pedaço fosse delas, todo delas. Dá vontade de clamar vão para o raio que as parta, mas elas não vão. Elas vão trabalhar a silhueta para o biquini, tentando disfarçar as estrias e as pregas adiposas que acumularam desde setembro passado. Talvez não seja assim, porém todas parecem ter o mesmo raciocínio. O biombo em que se transportam tem que ficar o mais próximo possível da porta do ginásio. Até ao limite. Mesmo o limite. Se fosse rebate, seria o rebate. Mas é rampa. As mais expeditas, essas, estacionam o carro no meio da ruela, impedindo o trânsito que deveria ser raro ou nenhum, mas que, por conta da praga que elas são, é frequente. Durante uma hora, nada há a fazer. As meninas estão envolvidas com o equipamento do ginásio, a suar a carne. Quem quiser transitar que espere ou convoque a polícia que, experiente de muitas vésperas, já sabe o caso. A autoridade nada faz, revela a sua impotência e alude à natureza. À paciência. Paciência?, paciência? O problema é que a disposição dele não é à paciência e a canícula de ananases, como escreveu Fradique Mendes, também não é condição para isso. Menos ainda em relação a camafeus que, além da celulite, parecem ter uma placa de platina na cabeça. Cambada de balofas. Segismundo.
2007-07-30
Rien. Repete-se o panorama. Os jardins secos. Os felinos indolentes. As vozes vagas, como se estivessem a débito de uma mágoa quase solene. As sombras escassas. Ocasionalmente o grito de um cachopo que se lança sobre a piscina improvisada e o som da água ferida pelo corpo do cachopo. Depois outro e outro e mais outro. Continua. O grito de uma mulher madura a acompanhar, para cuidado dos cachopos. O trânsito automóvel morto ou quase morto na rua. A zoada do ar condicionado, quase íntima. Um número não conhecido no telemóvel, uma, duas, três, quatro vezes. Rien. Os tontos do costume, fascinados com as raparigas e as mulheres que passam e como passam. Salivam como os cães de Pavlov. Roçam as costas da mão contra os lábios, para os enxugar, sem a elegância do homem Martini. Cospem sobre o talho imperfeito da calçada que elas pisam. Alguns frutos caídos sob a copa das árvores, fermentam. Ao longe silhuetas distorcidas por uma temperatura de miragem. A esplanada vazia. Devíamos viver numa cave. Ou voltar à aldeia. Segismundo.
2007-07-29
O que tem que tergiversar tem muita força. O senhor presidente do psd foi ajudar a animar o arraial da seita no Chão da Lagoa, na Madeira. A excursão foi-lhe conveniente. Como soe dizer-se, a um pequeno nada se recusa. Menos ainda mais currículo. E o lote de votos domésticos - dez mil, segundo consta - que lhe corresponde. Porque há uma costela de Isaltino, de Valentim, de Jardim, em cada senhor presidente do psd. Nesse e nos outros. Nicky Florentino.
2007-07-27
Ateneu da mesma noite. Olha quem é ele, a estas horas, disse o Américo. Ele atravessou a avenida, aproximou-se, o que é que estás aqui a fazer a esta hora?, pá, e cumprimentou-o. Estou sem sono, vim para aqui à espera que isto abra, para beber um cafézito. Olha, por acaso não tens por aí uma moedita a mais? Ele, deixa cá ver, abriu a carteira e cumpriu o ritual. É pá, já dá para mais do que um cafézito. E ele, até logo, seguiu para casa, enquanto o Américo, até logo, continuou à espera. Eram cinco da manhã. Segismundo.
2007-07-26
Escala de Grissom, iii. Perante a complexidade e o desconhecimento de alguns dos seus nexos impõe-se a necessidade de síntese, ou seja, o escrutínio atinado e criterioso das coisas e do respectivo regime de afectação. Segismundo.
De rebanho outro. Nunca é demais recordar, o sátiro é quadrúpede, tem cascos, porém não é expiatório. Também não é azémola. Segismundo.
imagem © Conrad Gresser (in Historiæ Animalium)
2007-07-25
Perspectiva. Há quem insista jogar monopólio com as regras do jogo da glória. Há quem segure segura e ciosamente cinco cartas admitindo, com elas, vir a conseguir um xeque-mate sobre os adversários. Como feita e percebida, a política em Portugal é muito assim. Por isso chamar-lhe dissonância cognitiva é pouco. Nicky Florentino.
Virtù para coro. Ai que medo. Ai que apalpam-me. Ai que amordaçam-me. Ai que horror. Ai que não posso espirrar. Ai que não posso assoar-me. Ai que estrangulam-me a alma e pisam-me os calos. Ai que não posso coçar-me. Ai qualquer coisa porque tem que ser qualquer coisa, não pode ser nada. Ai que não há uma canção assim, mas deveria haver, em que a voz cante o verso «bichinho álacre e intrépido». Ai que Argel é tão longe. Ai que a Nova Zelândia também. Ai. Ai ai. Ai caralho, l’homme est condamné à être libre. Ai caralhinho. Ai. Ai ao vento que passa. Ai ao vento que não passa. Ai. Ai. Fujam!, fujam! Segismundo.
Tedium vitæ. Esta foi a pergunta, e o caso é complicado? Esta foi a resposta, nada que não se resolva com Rimbaud. Segismundo.
Intimidade. Talvez sejam pormenores para a pele e para a noite. As mesmas inclinações, uma sobre a quinta-feira negra, outra sobre o dragão de Komodo, outra ainda sobre o Hindenburg em chamas. Não se sabe porquê. Segismundo.
se só deus existisse. Começou por ser uma acusação, estás satisfeito?, embora não como as outras, tantas, que lhe foram dirigidas antes. Não, respondeu ele. Encontrou a mão áspera com o ombro despido, que estava a ser soturado. Porquê?, perguntou-lhe a enfermeira, ao mesmo tempo que lhe laçava a carne. Ele observou o fio a correr entre si, a ser apertado, para aproximar os flancos da ferida. Quero ser escritor. Começou a lavoura para o terceiro ponto, escritor?, que tipo de escritor?, poeta?, os dedos ampararam a carne, a outra mão empurrou a agulha. Escritor de chão, de chão não varrido, soalho antigo, cuspido, com cascas de tremoço e cerveja entornada. A enfermeira permaneceu atenta à ferida, distanciou a cabeça à procura de outra perspectiva. E escritor de chão porquê?, ela apresentou assim a sua curiosidade. Após um compasso de silêncio ele continuou a resposta, para escrever cartas de amor. O chão tem o corte perfeito para isso. Acresce que as cartas de amor devem ser escritas sobre chão encardido, para destacarem-se. A enfermeira passou sobre a sotura um rolo de gaze várias vezes, até perfazer o penso. Mas, para valerem, as confissões devem ser escritas em papel limpo. Ele concertou a camisa e começou a abotoá-la. Firmarei como subscritor as cartas de amor que hei-de escrever sobre o chão, não escreverei confissões. Sou animal de carne solta, não me confesso. Eu estupro, eu magoo, eu mato, não me confesso. o Marquês.
2007-07-24
Il principe à consignação. No sistema partidário pátrio, o psd é um partido político de leva e traz, que é o que, em rigor, são os partidos de regime. Medra quando há lotes e sinecuras para distribuir pelos afectos ou amigos, faculdade que decorre do assomo ao governo e da instalação nos gabinetes das honras. Mingua quando a ração escasseia, porque a causa colheu poucos ou menos votos do que as outras causas concorrentes. Por isso, quando a respectiva trupe está em sobressalto, falar de ideologia, de doutrina, de programa, de Portugal, do senhor dr. Luís Filipe Menezes ou de qualquer outro senhor pediatra que seja senhor presidente da câmara municipal de Vila Nova de Gaia é o mesmo que tamborilar os dedos no volante do automóvel ao ritmo do pero peron pompero. Porque o tirocínio é o que é, uma jornada para a desgraça. Nicky Florentino.
Brave new world. Faz-me um casting e chama-me Tarzan dos computadores que, depois, faço-te um losango que, verás no écran, é um losango indubitavelmente, como aqueles que os geómetras e os senhores engenheiros fazem. Nicky Florentino.
Os meus problemas com Portugal, vi. Amiúde, por aí, entre a exaltação e a excitação, encontram-se referências a Jessica Simpson. O que não é suficiente para iludir a pergunta, mas quem é esta filha do Homer?, com arzinho de ai-não-me-fodas-que-eu-não-sei-tocar-saxofone. Segismundo.
A repetição das cicacrizes. Como se não lhe bastasse a vida, agora, durante as noites, tem-se entretido a compor cadernos que hão-de ser de cordel ou o caralho. Meia dúzia. A estupidez já é excessiva por ser estupidez. Não havia qualquer necessidade de a multiplicar em papel, mesmo que papel reciclado. Segismundo.
2007-07-23
Clube de salvados. Um partido político é uma seita. Por isso, posto pela soteriologia da respectiva causa - qualquer causa, a do psd também -, as quotas são para pagar. Como as penas. E não é despiciendo quando. Pois, como em muito da vida, em política uma das verdades maiores é «antes agora do que mais tarde». E cinquenta dias não é demais para ser agora. Nicky Florentino.
Jogar ao pau com os ursos. O senhor dr. Paulo Portas faz muito bem em processar o estado por não conseguir garantir a sua reputação. Tal decisão significa que o fulano está não só a trilhar bom caminho mas também a aproximar-se de bom destino. Processar-se a si pelo mesmíssimo motivo. Nicky Florentino.
O supremo da pátria. Juro cumprir e fazer cumprir a constituição da república portuguesa mas este juramento é para fazer de conta e cerimónia porque há instâncias próprias, judiciais, et cætera e tal e eu às vezes é como se não fosse de cá e apenas tivesse vindo ver a bola a passar. Nicky Florentino.
O acabar que nunca acaba. Sobre o fim, escreveu a Ana. Sobre o infinito, escreveu o Filipe. Segismundo.
Travestir a culpa. Primeiro o ócio, depois o medo. Nunca o respeito. Nunca uma tatuagem. Fragas. A pastoral, uma pastoral para a pele, para a solidão, que devolve o princípio ao viajante. Não há este lugar. Não há este destino. Primeiro o ócio, depois o medo. Segismundo.
and thus began my morbid fascination. Olhavam tristes pela janela. Já não há viagens de comboio longas, disse ele. É por isso que vais ficar aqui sozinho e sem horizonte, disse ela. o Marquês.
2007-07-21
Cilício. Perante o friso da censura, está bem, não digo caralho, digo caralhinho, para suavizar, pode ser? Segismundo.
2007-07-20
A costa é larga mas não passa por Sangalhos. Ai. Ui. Lança. Lança-me. Todo. Ai. Como se fosse um martelo. Ai ai. Não. Como se fosse um disco. Ai ai ai. Ground control. Lança. Lança-chamas, como um dragão. Ai. I like. Ui. Ground control to major Tom. Ai. Não. Ui. Sim. Lança. to major Tom. Lança. Lança, lança. Como em África. Como se não houvesse mais mundo. Take your protein pills and put your helmet on. Ó. Ó. Imagina o Tuvalu. E o Porto Santo. Agora não. Não. Pára. Não. Continua. Lança. Ó. Lança-me. Ai. Água fria, água benta, nada exótico. Água do Luso também serve. Lança. Ó. Lança. À bruta. Check ignition and may God’s love be with you. Mais. Mais. Mais. Como se fosse um tsunami. Como se Hitler ainda fosse vivo. Lança. Como nos jogos olímpicos. Como se não houvesse mais mundo. Ou mundo. Ai. Ó. Lança. Ai. O major Tom não há-de morrer em enseada amena. Não. Ó. Sim. Lança. Ai. Ai. Ai. Ai. Ai. Ai. Ai. Ai. Ai. Ai. Ai. * Segismundo.
* neste post aparecem alguns versos da canção “Space oddity” (in Space Oddity, Philips, 1969), de David Bowie.
Para uma fenomenologia do capitalismo. Experimentem fazer um safari numa loja de roupa frequentada por teenagers. Esqueçam as que vão acompanhadas pela mãe e/ou pelo pai. A exasperação delas e o desespero dos progenitores merecem a compaixão que todos os miseráveis inspiram e, por isso, são um caso à parte. Fixem-se nas que andam em matilha, as deslumbradas ou de hábito. Nas que deixam os cabides, as prateleiras, as mesas e os provadores como se tivesse passado aí um tufão. Nas que, ávidas de reflexo, disputam os espelhos, abalroando a gente incauta estacionada diante, se necessário. Nas que soltam gritinhos e risinhos de hiena e esgotam o saldo do telemóvel a comunicar às hienas ausentes o que andam a ver e a experimentar, para inveja das outras. Nas que dizem a puta disse que veio cá ontem e já comprou, não quero. Carnes tenras e firmes, sem juízo, natureza apenas. Capazes de sacrifício, na hora de comer e de beber, para parecerem princesas ou meninas das revistas. O capitalismo cativa as almas cedo e ganha-as assim. E é assim que, em conjunto, somos arrastados para o fim interminável. A felicidade merece-nos. Segismundo.
2007-07-19
Jangada de pedra. O senhor José Saramago é uma espécie de senhor Prof. Doutor Marcelo Rebelo de Sousa com nobel da literatura. Diz umas coisas e, depois, já disse. Provavelmente em castelhano. Segismundo.
Estação destino. Olha-se para a ferrovia morta, enferrujada, sem comboios a circular, e percebe-se o limite da sua condição fantasmagórica, já não ser uma linha de fuga sequer. Segismundo.
Humboldt county massacre. Tanta coisa a, para e por fazer e ele quieto, a imaginar os sapatos vermelhos da senhora dona Zita Seabra. Segismundo.
2007-07-18
Dar banho ao cão. Não sei se foi mais confrangedor, se foi mais pungente. Marques Mendes disse na televisão que a eleição intercalar da câmara municipal de Lisboa foi uma eleição sui generis e, convém não esquecer, paroquial. Mas foi confrangedor. Muito. E foi pungente. Muito também. Nicky Florentino.
Escala de Gil Grissom, i. Em última instância, a evidência do muito que é o mundo pode ser reconduzida a provas de contacto. Segismundo.
The end. Há uma espécie de eternidade na dor que termina o horizonte. Mesmo que o horizonte permaneça, a dor coloniza-o com invisibilidade, não elidindo-o, cegando-nos. De algum modo, quando assim é, o fim apanha-nos mais cedo. E não estamos, nunca estamos, preparados para isso. Que se foda. Segismundo.
Marchar, marchar. Não devemos ser inteligentes. Ou esforçados, tentar dar o nosso melhor. Devemos viver dentro de uma banda desenhada, insultar ou ofender as personagens que incomodam e, quando isso deixar de ser pátria possível ou agradável, abrir a porta e deixar entrar o Jack Bauer, não o McGyver, que há dentro de nós. Se não for ele, o Jack Bauer, autenticamente ele, nada há a fazer. Pelo que o dever seguinte é o suicídio. Segismundo.
2007-07-17
Da aristocracia popular, ii. Em rigor, na ordem a que chamam democracia o que conta não é tanto o voto quanto a contagem dos votos. Nicky Florentino.
Da aristocracia popular, i. Aquilo a que, também feito em Portugal, chamam democracia mais não é do que aristocracia popular. É este o nome exacto do regime, por, na origem, de facto, configurar-se como processo de eleição dos eleitos. Nicky Florentino.
2007-07-16
Bisca de nove. Aconteceu ontem a eleição intercalar do executivo municipal da paróquia bolhada, a capital. As e os lisboetas foram ingratos. A paisagem não estremeceu. E os senhores vão continuar a ter que entender-se e entenderem-se. Agora é o mesmo problema para outro elenco. Ou seja, após o sufrágio, subsiste o problema político no município de Lisboa para resolução do qual, antes, decidiram abrir as urnas. Nicky Florentino.
2007-07-15
Excursão ao Altis. Ao domingo à noite, os socialistas em Lisboa ou são do Alandroal ou são de Cabeceiras de Basto. Nicky Florentino.
2007-07-13
Do dever de dar água às plantas. O mundo está repleto de criaturas mimosas. De seres frágeis e sensíveis também. Olha, aquela votou sim ao aborto e não rega as plantas, a puta, deixa-as morrer. Não rega as plantas mas, à distância, pelo que parece, toma banho. Toma banho e tem piscina em casa. É todo um outro paradigma de comunidade. Segismundo.
Uma demanda. Às vezes um gajo aflige-se com pormenores. Por exemplo, saber o paradeiro do Ezra Pound que deveria estar em determinado lugar, aquele, que está vazio, e não está. Como consequência envolve-se numa demanda. Profere «ai o caralho» e repete, repetindo, quase como oração de responso. As mãos passam por Antonin Artaud, Heliogabale e os outros, como passam por Mário de Andrade. Constata-se que Rui Ramos * está fora do lugar, em mais do que um sentido, entalado entre Charles Bukowskis. Entretanto, sem porquê evidente, acontece uma mudança, «ai o caralho» é substituído por «foda-se». Mas tudo permanece como estava, continua um Ezra Pound em parte incerta. Não faz mal. Dá-se Sonic Youth aos vizinhos, a esta hora já pode dar-se Bad Moon Rising aos vizinhos. Desde “Ghost bitch” a “Satan is boring”. E os dedos, as mãos, agora sob banda sonora e outra vez «ai o caralho», prosseguem a perseguição ao Ezra Pound desaparecido, já alta e demorada vai a aventura contra o sono. Segismundo.
To be continued. Por instantes coloca-se uma hipótese, talvez seja preferível o fim. Mas depois, perante a panóplia de finais possíveis, percebe-se que a escolha não é fácil. De tal modo que a pergunta «acabar como?» surge como variação de uma outra interrogação célebre, «que fazer?». É por isso que o desassossego não mata. Fere apenas e continua. Segismundo.
2007-07-12
Com distinção e louvor. Louvado seja o caralho, disse ela três vezes. À terceira vez, à cautela, ele afastou-se. Segismundo.
Os meus problemas com Portugal, v. Numa ilha sabe-se lá onde, John Locke é o obcecado por botões e teclas. Segismundo.
no terraço Villiers. Ao princípio sentiu nas mãos um ardor pequeno, quase nada. Ignorou esse facto, o sintoma não a demoveu. Vestiu um casaco, para acautelar-se em relação à temperatura. Ouvira num noticiário da rádio durante a manhã uma referência a acentuado arrefecimento nocturno e, por ser mulher de sangue quente, não estava para confrontar-se com o frio eventual. Assim vestida, saiu em direcção à esplanada. Chegou, sentou-se, pediu um café, fumou um cigarro. Sentiam-se os prenúncios outonais. O vento mais levantado, não brisa apenas. O céu mais nublado, no entanto cortado por uma claridade da lua, incomum para aquelas noites. Ela era a única cliente na esplanada. Depois de beber o café fumou outro cigarro. Nesse momento já sentia o corpo mais quente. O sangue começou a parecer-lhe uma torrente de lava. Porém não transpirava e a sua pele não ruborescera. Sentia a face e as mãos febris, mas não inchadas. Ao mesmo tempo, a visão começou a parecer-lhe em fast foward, não obstante tivesse uma definição superior ao costume. Conseguia ver coisas, pormenores, detalhes, que antes nunca percebera. Todos os seus sentidos estavam sob tumulto, como se estivessem afinados extraordinariamente e em exercício de sondagem permanente. Sentiu distorções ligeiras no olhar, que atribuiu a uma aceleração das sinapses. Para além da estranheza do estado em que se sentia, ela não suspeitava o que estava a acontecer-lhe. Foi por essa altura que um homem com o torso nu sentou-se numa mesa ao lado da sua e saudou-a, sorrindo e dizendo boa noite. Não conseguiu retribuir o cumprimento, algo a silenciava. Atordoada por zunidos, o mais que conseguiu foi ouvi-lo pedir um café à empregada. Entretanto a temperatura aumentou dentro de si. Sentiu dissipar-se a capacidade de controlo dos seus actos e ser conduzida a uma situação de vertigem indescritível. Pouco depois, como transmutada em fera, lançou-se sobre o abdómen do homem que esperava o café e devorou-o. Devorou-o literamente, auxiliada pelas mãos que operavam simultaneamente como gumes e grampos, golpeando e abrindo a carne, para que pudesse ser mastigada mais facilmente. A cena demorou minutos breves, não mais de seis, sete. E, entre as poucas, nenhuma testemunha verificou nela qualquer propriedade estranha, garras em vez de mãos, incisivos de carniceiro, pelagem bravia ou orelhas afiladas. Era uma mulher apenas. Uma mulher como as outras. o Marquês.
2007-07-11
Quermesse. O problema não é o governo, nas suas senhoras e nos seus senhores, demonstrar ter uns laivos sobre a estupidez apenas. O problema autêntico é tal gente pôr-se a jeito e, depois, não gostar da rifa em que se meteu. Nicky Florentino.
Antes. Os dias sem internet eram diferentes. Morria-se com felicidade e obra completa. Segismundo.
A rogo daqui e daqui, porém sob protesto danado - que a canícula não está para estas merdas -, publica-se o rol de títulos lidos, quase lidos ou em leitura por ele - todos comprados e pagos -, em Maio e Junho, com excepção dos de poesia, que isto não é um blog de mariquices. Benhabib, Seyla (ed.) (1996), Democracy and Difference: Contesting the Boundaries of the Political, Princeton, Princeton University Press. Blake, William (2005), Sete Livros Iluminados, Lisboa, Antígona. Blake, William (2006), Quatro Visões Memoráveis, Lisboa, Antígona. Boudon, Raymond, com Robert Laroux (2003), Y a-t-il encore une Sociologie?, Paris, Éditions Odile Jacob. Chivard, Yoann, e Fabien Vehlmann, (2006, 2007), Os Gigantes Petrificados, Porto, Edições Asa. Christin, Pierre, com Enki Bilal (2000), Le Sarcophage, Paris, Les Éditions Dargaud. Corpus, Colin (2004), Party Politics and Local Government, Manchester, Manchester University Press. Fournier, Jean-Claude (1973, 2007), Tora Torapa, Porto, Edições Asa. Jeunet, Bernard (2006), A Arte na Página, Barreiro, Município do Barreiro. Laxness, Halldór (1934-1935, 2007), Gente Independente, Lisboa, Cavalo de Ferro. Lear, Edward (2005), Learicks, Lisboa, & etc. Miranda, José A. Bragança de (2006), Albuquerque Mendes. Ou o Ardor da Arte, Lisboa, Editorial Caminho. O’Connor, Flannery (1952, 2007), Sangue Sábio, Lisboa, Cavalo de Ferro. Pavese, Cesare (1947, 2007), Diálogos com Leucó, Lisboa, Assírio & Alvim. Simmel, Georg (1916, 1996), Rembrandt. Ensayo de Filosofía del Arte, Murcia, Colegio Oficial de Aparejadores y Arquitectos Técnicos. Nada mais havendo a declarar, dá-se por encerrada a manobra de strip, com a sugestão seguinte: enfiem a cabeça no Atlântico, para ver se arrefece. Segismundo.
2007-07-10
Das cabras e seu rebanho. O mundo virou um bordel!, gritou com sotaque de açúcar mascavado um pastor, aí tem tudo por um preço certo, minha gente, menos, sabem quem?, Jesus e quem está com Jesus no seu coração, que não se vendem ao demónio por nenhum dinheiro desse mundo. Segismundo.
Nuovo cinema Paradiso, ii. Estava anunciado Lady Chatterley. Ele chegou e, como em outras ocasiões, percebeu que o filme que ia ser exibido, afinal, não era o publicitado no cartaz. Farto de merdas, como a paciência a um nível filhadaputa, pediu o livro de reclamações e lavrou prosa adequada aí. Depois, para espanto da senhora da bilheteira, comprou um ingresso e foi ver La Educación de las Hadas. Com a Irène Jacob. Segismundo.
2007-07-09
Deus nunca existe. Ó Eva, pá, o Tony Parker?, ainda se fosse o Tony Soprano ou o Peter Parker. Segismundo.
Song seven. Sete, sete não se sabe o quê ou o caralho, num tempo em que quase tudo é decimal. Segismundo.
2007-07-06
Nuovo cinema Paradiso, i. Aqui, neste tugúrio, sob a umbria da umbria, penamo-nos por um remake de U Turn, um dos filmes melhores de Oliver Stone. Com João Miranda a fazer de Jake McKenna, substituindo Nick Nolte. Com Henrique Raposo a fazer de Bobby Cooper, substituindo Sean Penn. Com João Gonçalves a fazer de sheriff Virgil Potter, substituindo Powers Boothe. E o Marquês a fazer ora de Darrell, o mecânico míope e cínico, ora de Grace, a puta que também morre no fim, substituindo, respectivamente, Billy Bob Thornton e Jennifer Lopez. Mantém-se a dúvida sobre quem há-de fazer de Toby N. Tucker, TNT no toutiço, substituindo Joaquin Phoenix, se o senhor Prof. Doutor João César das Neves, se o senhor Prof. Doutor João Carlos Espada. O outro substituirá Jon Voight e fará de seja ceguinho. Segismundo.
Da noite. Tanta ciência certa para tanta pergunta enganada. Segismundo.
sbsr, três-sete e cinco-sete e sw, cinco-oito. Festivais mas é o caralho. Segismundo.
2007-07-05
O governo patrãozinho, ii. Parece que a doutrina governamental não autoriza que se diga mal do governo em determinados contextos. Não pode expor-se o ridículo do senhor ministro da saúde. Não pode denunciar-se o cataventismo do senhor ministro das obras públicas, transportes e comunicações. E, sobretudo, não pode dizer-se mal do senhor primeiro-ministro. Agora, uma questão, e bem?, pode dizer-se bem do governo ou sus muchachos? Nicky Florentino.
O governo patrãozinho, i. O governo também é patrão - ou arma-se na honra referida - e, por isso, como na tropa ou nos escuteiros, a disciplina profissional na administração pública é um imperativo funcional. Nicky Florentino.
A forma da fome. Alguém, gostava de ser o Bruce Willis. Outrem, Bruce Willis?, qual Bruce Willis? Alguém, o do tempo da Demi Moore? Segismundo.
Handicap. O destino empurra para si. Por isso, às vezes, a morte parece uma vantagem. Segismundo.
2007-07-04
Escala de Bergson, ii. O riso é um dispositivo de expressão tanto de encontro quanto de distância. Segismundo.
o fim de Maricelo Montes, o murcho. A vida custava-lhe. A vida custa a todos, mas parece que, por contrariedades muitas, a dele custava mais ainda, como se sobre ela incidisse uma taxa suplementar de desgraça e dor. A família, pais e irmã, morrera num acidente automóvel. A quantidade de desamores e humilhações por que passara era maior do que o elenco das estrelas. Os negócios em que se envolvia tendiam a resvalar de mau para pior, facto que teve como consequência um acumulado de falências. Para além disto, há muito que o património da casa, parco, havia sido liquidado. Poupanças não tinha. Era gago, disléxico, míope e canhoto. Tinha um hálito bafo-de-onça. E mesmo assistido, era-lhe difícil conseguir uma erecção e, se a conseguia, ejaculava em instante com duração inferior ao tempo de ignição de um fósforo. Como se este rol de misérias não fosse suficiente, o excesso de peso impedira a sua admissão no curso de saltos com paraquedas que desejava. Os braços curtos e os dedos grossos não lhe permitiam manipular com destreza armas com o calibre necessário. Tinha aversão a gumes e o sangue impressionava-o deveras. Desde pequeno não simpatizava com martelos. O cheiro da gasolina ou do diluente provocava-lhe náuseas. Saltar de um edifício alto estava fora de questão, porque padecia de vertigens e era mais perigoso do que saltar com paraquedas. Deglutir drageias até à overdose ia contra os seus credos moral e religioso. A solução que preferiu foi, por isso, óbvia. Pegou um berbequim, ligou a respectiva ficha à tomada de electricidade, embuchou-o com uma broca de doze milímetros com cabeça de diamante, encostou-a à tempora direita e, como se fosse um gatilho, primiu o botão. A broca afundou-se sem dificuldade. O caso, porém, não terminou com o acto referido. É que, registe-se, no momento do eclipse ele não sentiu desfilar a habitual sequência de fotogramas que sumula a vida. Até ao passamento, até ao derradeiro sopro de vida, o seu espírito esteve ocupado integralmente com uma interrogação de motivo aviltante, o pénis do Wolverine é de adamantium? o Marquês.
2007-07-03
Páginas do livro das embirrações, iii. Daniel Craig, a versão parkour de James Bond. Segismundo.
Rebanho de mansos. Ai a asfixia democrática. Ai a indignidade da ordenação da abertura da correspondência dirigida a alguém do serviço. Ai que indecência fazer queixinhas. Ai que infâmia colocar alguém sob processo disciplinar ou judicial porque disse ou escreveu qualquer coisa sobre o senhor primeiro-ministro. Ai os graffiti. Ai a demissão, como coice de mula, de uma senhora directora de um centro de saúde. Ai que não li. Ai as bases de dados do estado e os cidadãos desgraçadinhos. Ai as festas e as romarias, tão bonitinhas. Ai o lugar para estacionar, que não há. Ai os filhosdaputa da autoestrada, os do costume. Ai o santo padroeiro. Ai os malandros que agora não querem fazer referendo sobre aquela coisa, não se sabe bem o quê, sobre a união europeia. Ai a Deolinda. Ai o imposto automóvel. Ai a bolacha baunilha. Ai que não vi. Ai que ele é corno e ai que ela é puta. Ai os santinhos populares, que já passaram. Ai o selo para o carro. Ai que os treinos do sêlêbê já recomeçaram. Ai os ciganos. Ai que o senhor professor Marcelo disse. Ai os dêvêdês piratas ao domingo de manhã na Brandoa. Ai o calor. Ai que foram de férias e o restaurante está fechado. Ai a praia. Ai o campo, as pegas e os pederastas que passam, como na canção. Ai o Tuvalu, que está a ficar debaixo de água. Ai que em Mato Miranda não é assim. Ai que não ouvi. Ai que vamos para a piscina. Ai coça aí. Ai os exames. Ai o subsídio. Ai a Rhona Mitra. Ai coitado, tinha sessentaetal anos, ainda era um rapaz novo. Ai a indexação à euribor. Ai que estou a ficar sem bateria. Ai o mister José Couceiro e os miúdos. Ai que há uma eleição apenas. Ai os ombros e os umbigos. Ai que não sabia. Ai a celulite e ai o colesterol. Ai que o café está quente. Ai o spread. Ai que, lá na escola, não podem todos chegar ao topo da carreira. Ai o bronzeado delas. Ai que a cerveja não está gelada. Ai que não há da marca que eu queria. Ai o psivinte, ai o dow jones, ai o nasdaq. Ai o caralho. Ai que agora há perna-de-pau grande. Ai, ai, que no curral tá-se bem. Segismundo.
uma mão sobre Philip Larkin, ii. Porque a mãe tardava aparecer, a criança começou a chorar. O problema não era o atraso apenas. Na véspera a mãe havia-lhe prometido um sorvete, o que era raro a criança comer. Merecia-o em função do resultado extraordinário que conseguira num exercício escolar. Porque vigiava-lhe a dieta com rigor, a mãe estaria a demorar-se para esquivar-se a dar-lhe o sorvete prometido?, perguntava a criança a si e torturava-se com isso. A tua mãe já vem, não chores mais, ela deve ter-se atrasado por causa do trânsito, tentaram sossegá-la. Estas palavras disfarçavam mal o incómodo sentido na escola. A mãe, aquela mãe em particular, nunca chegara atrasada antes. Era exemplar também por isso. Muitas invejavam-a. Invejavam-lhe a beleza. Invejavam-lhe o estilo e a roupa e os acessórios. Invejavam-lhe o perfume discreto e a cor da pele. Invejavam-lhe o estatuto e a serenidade. Invejavam-lhe a aura. Invejavam-lhe o marido. Invejavam-lhe as prestações escolares do filho. Ninguém lhe desejava bem, mas ela também não necessitava. Era reconhecida profissionalmente e auferia em conformidade. Bem casada e, ainda por cima, ganha uma fortuna, diziam as invejosas. Na escola, decidiram contactar telefonicamente o pai da criança. Tentaram, mas ele não atendeu. Entretanto a criança tornara-se mais irritante. Não parava de chorar e soluçar. Já ninguém queria saber da mãe ou da sorte da criança, queriam que o pequeno fosse levado apenas, que tornasse o sossego. A mim ninguém paga para ser mãe de quem não é meu filho, desabafou uma. Ouvir o choro tornou-se aflitivo. Sentes falta da mamã?, sentes?, tentaram confortar outra vez o miúdo, não mais para tranquilidade dele do que para alívio de quem escutava o seu choro. Não!, não quero a minha mãe, quero um gelado, o gelado que ela me prometeu ontem. O pai continuava sem atender o telefone. Transpirado e em convulsões, segurava a cabeça da sua assistente, enquanto ela lhe prestava um favor extraprofissional. Agora não estou para ninguém... continua a trabalhar, que estás a trabalhar bem. Ao mesmo tempo a mãe, essa, descobriu-se a despertar num lugar estranho e maniatada. Diante de si estava uma maçã. Trinca-a!, ouviu ela uma voz ordenar-lhe, sem perceber de quem. o Marquês.
2007-07-02
Never a frown with Gordon Brown. O novo primeiro-ministro britânico é uma espécie de canção d’The Stranglers. Nicky Florentino.
Hoffmann por Offenbach. Muitos, nomeadamente os conservadores de carteira, celebram L’Opium des Intellectuels, de Raymond Aron, ignorando que o grosso do argumento já havia sido desfiado por Eric Vœgelin, na referência à modernidade como era gnóstica. Portanto, em rigor, não é o fascínio por um ismo em particular, o ismo de Sartre, que merece denúncia. Porque ismos há muitos e fascínios estúpidos por ismos também. Segismundo.
Escala de William Shatner, i. A teelvisão é um instrumento que permite descobrir e manter mulheres à distância. Segismundo.
A biotecnologia que veio de Shangri-La. São muitas as invenções estúpidas. Mas nenhuma é mais estúpida do que o pêssego em calda. Segismundo.
Rumo. Um, dois, três passos atrás, para, mais por instinto do que por vontade, destacar-se do rebanho e regressar à alcateia. o Marquês.
2003/2024 - danados (personagens compostas e sofridas por © Sérgio Faria).