Calimero non esiste. Mais do que a verdade, importa a justiça, importa a simetria. Que não é o mesmo que a reciprocidade. Ser e ser-se livre, assim, não é fácil. Também não é necessariamente bonito. É. É apenas. Não por fatalismo ou desistência, mas por que se foda. O que, embora possa não parecer, é muito diferente. Segismundo.
Finisterræ. Desta terra que cheira a mar, aqui, somos náufragos. Também aqui já ninguém clama «mãos ao alto!» porque, sabe-se, levantar os braços é uma manobra desnecessária. O futuro aproxima-se e, como grilheta, apropria-se de nós, cativa-nos. O futuro, não o fim. É que agora já não há fim. E por não haver fim - e porque, antes, o fim conferia-nos sentido - também não há tragédia. Eternos, sem fim, em looping e até à náusea, somos obrigados ao regime da comédia. Nesta circunstância, a única esquiva possível à condição de farsante é o riso de fundamento irónico. É que, quando e enquanto não há fim, apenas mordendo-nos podemos encontrar um sentido. Ou seja, um princípio e um fim na e para a mesma carne. Segismundo.
Os animais domésticos com chave da porta de casa. Para além de cada um, uma das marcas mais evidentes da domesticidade é a chave que cada um traz no bolso. Essa chave é um dispositivo de segurança e confiança. O domínio sobre essa chave sugere uma sensação de domínio mais extensa, extra. Em grande proporção, o controlo do dispositivo que abre a porta de casa é o controlo e a protecção de si. Não obstante esse controlo, não somos animais de rua. Já não sabemos ser animais vadios. O nomadismo que preservamos obedece a um ciclo curto, apertado, de gravidade quotidiana. Não é nomadismo, portanto. Começa aí, ao sermos em função do domicílio, a nossa perdição. Foge-nos a diáspora. Somos pátria escassa. Segismundo.
Anda uma mãe a criar um filho para. Passou e olhou. Constatou vários volumes sobre a secretária. Estava As Mil e Uma Noites sobre a Bíblia, os génios e a carne sobre a biblioteca divina. Ele quase que ouviu a preocupação beata no interior dela, «ó meu Deus!, o que é que ele andará agora a tramar?». Olhou-a, como se tivesse sido capaz de antecipar a sua preocupação, e perguntou-lhe, há algum problema? Ela respondeu, não, excepto andares para aí a escrever que a Nossa Senhora fuma. Segismundo.
Se a vida é uma narrativa lenta. Acumulam-se os papéis com futuro, notas, apontamentos, legendas, propostas, sugestões, projectos, planos, esboços, esquemas, preparos, encomendas, orçamentos. Há neles uma tentativa de prenúncio, mas esgotam-se as oportunidades. Permanece o derrame constante da luz. Atrasa-se a escrita, o registo. Atrasam-se as escritas, os registos. Nuns casos por vontade, noutros casos por desencontro, determinados prenúncios não alcançam a condição de pronúncia. Muitos dos papéis cujo produto tarda são mortos, trasladados para o esquecimento, processados pela lâmina do triturador. Para a demora não há arquivo. Há proposições que jamais serão posições. Adiante. Segismundo.
O modo de princípio é grave em todas as coisas. É tudo muito bonito e, hoje, até é dia de tolerância de ponto para as desgraçadas e os desgraçados a cumprir missão nos serviços da administração pública tutelada pelo senhor primeiro-ministro. Mas pense-se um bocadinho. Quantos filhos de virgens é que são conhecidos? Quantos filhos de virgens tiveram um final feliz? e não morreram de modo atroz? Nascer de mãe virgem não parece bom augúrio. E não adianta a conversa da ressurreição e tal. Se é como reza a lenda, o filho da virgem, sim, ressuscitou. Mas das chagas não se livrou. Segismundo.
Acácia, meu amor # xii. Hoje é dia de sobressalto. Estou alerta. Tudo se conjuga, os dados estão lançados. Por ora nem brisa nem brasa. Os bichos da savana vivem os últimos momentos de indolência, uma forma estranha de festa. Comove-me este espírito, a comunidade quieta. Porém, logo, correrei. Esta noite, prometi a mim, a ceia será de carne. Não de sonhos. Apetece-me carne tenra, sem passado, temperada pelo próprio sangue breve. É isso que, ainda guardado em ti, meu amor, já vigio. Eliz B.
O pão que o diabo amassou. Um gajo é surpreendido pelo efeito de irmandade quando alguém reserva outro pão, em exclusivo, porque percebeu que no domicílio onde foi deixar o pão previamente destinado a ele estava instalada la marabunta e, portanto, que dificilmente lhe calharia uma migalha de côdea. A amizade, a consideração e o espírito natalício, foda-se, são isto. Segismundo.
Comunidade, ii. Que ninguém reprima o desejo de ornamentar a casa e as ruas com lampadinhas, anjinhos, estrelinhas, sininhos, renas e presépios e de fritar filhós. Porém, que também ninguém esqueça que a mãe do menino Jesus - a virgem Maria, pois claro - em situação pós-parto é a Sophie Marceau, a fumar. Sim, sim, a fumar, junto às palhas da manjedoura, como uma prima donna. Segismundo.
Comunidade, i. Em regime liberal old fashion, um tipo tanto pode não desejar quanto pode desejar feliz Natal. É um direito seu. Assim como quem a quem esse desejo for directa ou generalizadamente endossado tem o direito de se sentir incomodado ou indignado por lhe ter sido desejado feliz Natal. Cada um é como cada qual. Quem quiser ter um feliz Natal que tenha. Quem não quiser ter um feliz Natal que não tenha. O que significa que tão estúpido é alguém ser censurado por desprezar o Natal quão estúpido é alguém ser censurado por desejar feliz Natal. Mas o Natal é o Natal, para o bem e para o mal. Daí a exortação, que ninguém reprima o desejo de reclamar, de julgar que o Natal xó!, que nojo. Porém, para quem se incomoda ou indigna com o Natal, feliz Natal e tal. Melhor, um santo Natal, com todo o folclore patético que lhe está associado. Segismundo.
O ciclo dos miseráveis. Não há um problema no CDS/PP. O CDS/PP, essa mesma entidade, é um problema. Antes de mais é um partido político. Para além disso é um partido político de pequena dimensão - em todos os sentidos. Finalmente, o axioma é antigo, quando aos senhores da seita cheirar o pão que agora não há lá em casa, entender-se-ão, empinarão o peito e afinarão o nó da gravata, falarão sobre a herança e a doutrina democrata-cristã e tratarão de enunciar a sua disponibilidade em prol do bem, do bom e do bem bom da pátria. O ciclo é assim. Quando é a miséria, como por ora, a fartura e o juízo não abundam. Em compensação, sobejam as conveniências. Quem é que, sem pão para encher a boca de silêncio, se entende entre tanta e puta conveniência? Quase ninguém. Pelo que, entretanto, brincam às fintas e às confianças. É o tira, o mete, o rapa e o põe da miséria. O que há não chega para todos. Nicky Florentino.
Latitude. Nada mais se sabe sobre a condição humana, excepto os seus limites. A humanidade existe no intervalo entre a Deolinda e o Zé Vitório. Segismundo.
Estação natal. O sonho do comboio. A falta de legendas. O frio conscrito, associado ao corpo. A paisagem vaga, apagada pela velocidade. O destino incerto. O espírito a escorrer, folgado e delicado. O cuidado com o que se diz, não se pode dizer caralho com o sentido e a frequência habituais. A impressão anónima. O espelho quieto. O frio, ainda o frio. O corpo mais exacto. A cerimónia, a convenção. O spray para os grafitos. O fio de sangue derramado desde a narina. A encenação, a dissolução. Ainda dentro do sonho do comboio uma discussão. Que não é, não pode ser, o Super-Homem. Que não é, não pode ser, o Homem-Aranha. Não é, não pode ser, o Pai Natal. Que é apenas um foco vermelho cujo movimento é sugerido pela dinâmica do comboio. O sonho do comboio. O cheiro dos sonhos, o doce cheiro dos sonhos. As mãos vagas, arrefecidas. A memória de quando índio, a memória de quando gangster. O lume apagado. A fartura sobre a mesa. Recordações sobre recordações sobre recordações. A esquina. A esquiva. O sonho do comboio. O sono. Segismundo.
Função promocional. Se a propósito de violência doméstica alguém alude a «um caldo sociológico», isso significa que esse alguém está a necessitar de um clister social? Segismundo.
Mínimo denominador ontológico comum. Provavelmente há alguém com palato sensível a néctares tão refinados como o crude ou o licor de alcatrão. Porém ninguém no mínimo das suas faculdades discute Bushmills. Não por tal discussão ser confrangedora ou constrangedora. Mas pura e simplesmente por essa discussão não fazer ou ter sentido. Segismundo.
Montesquieu est mort. O senhor presidente da República suscitou a apreciação da constitucionalidade de dois artigos do novel regime das finanças locais ao tribunal com competência para o efeito. Consta que, entretanto, voluntariamente, o senhor primeiro-ministro remeteu uma epístola ao referido tribunal, informando-o sobre a importância que credita ao referido diploma e, aproveitando o frete, remetendo uma manápula de pareceres jurídicos que atestam em prol da constitucionalidade do articulado mencionado. É a isto que, como diz o outro, se pode chamar cooperação estratégica. Nicky Florentino.
Cálice entornado. Parece que as criaturas encharcadas em espírito santo do Vaticano se propõem corrigir a demografia salva pela morte de Cristo (vide página vinteeum da edição de hoje do Público). Que o menino Jesus, já grande, padeceu, morreu e foi sepultado não para a salvação de todos, como se vai rezando nas missas da madre e santíssima seita católica, apostólica e romana, mas apenas para a salvação de muitos. O sentido da emenda suscita bons augúrios. Mais algum tempo e vão corrigir plenamente a asserção. O desgraçado morreu por ninguém. Segismundo.
& vice-versa. Eu, Carolina é, a modos que, um Bilhete de Identidade tépido e nocturno, sem cadastro académico, com oportunidade natalícia e sem malícia. Segismundo.
È un’ingiustizia però! Ao contrário do que é celebrado frequentemente, não é de descartar a hipótese de o sistema de justiça funcionar e funcionar bem. Atente-se. Nem é bom nem é bonito sentir-se que putativos manhosos ou meliantes não são sancionados na medida certa e em tempo oportuno em sede de juízo togado. Mas antes isso do que a sua condenação popular, a rogo da turba ou dos plumitivos da comarca. Ou seja, se o sistema de justiça não condenar porque, por circunstâncias sistémicas, não pode condenar, isso é a justiça a funcionar bem. E antes isso do que o arbítrio e a volubilidade das simpatia e sanha gentias. Por bem, a soberania do povo esgota-se num juízo político circunstancial, aquando as eleições. O povo não legisla. O povo não administra. O povo não julga. Legisla-se, administra-se e julga-se em nome do povo. O que, embora substantivamente diferente, parece o mesmo. Ainda bem. Assim, em ilusão, os gentios (con)vivem melhor. Porém insatisfeitos. É da sua raça. Nicky Florentino.
Delicatessen e sugestão. Na página dois da edição de hoje do Público foi estampado um quadro relativo à dimensão média, calibrada em hectares, das explorações agrícolas nacionais. Alguém decidiu atribuir a tal quadro o título «Falta músculo». Se fosse um quadro relativo à dimensão média, aferida em cabeças de gado grosso - de suíno para pesos maiores -, das explorações pecuárias pátrias, é provável que esse alguém sugerisse titulá-lo «Casca grossa» ou «Não há abóboras com cinco arrobas no Alentejo». Segismundo.
Self service. As putas, como os filhos da puta, apontam o indicador com facilidade, excepto quando estão diante de um espelho e não dispõem de qualquer outro alvo. Segismundo.
Acácia, meu amor # xi. O que significa dizer olá?, quando estou camuflado. Sei que não me vêem, mas eu conheço as coordenadas do que me está afastado. Serei sempre estranho, atendendo ao modo como manobro o corpo, como me arrumo aqui, escondido, à distância, esperando o crepúsculo. Acompanho com o olhar o que é mais do que eu e além. O que significa dizer olá?, se o meu alcance é, agora, pelos meus olhos e, mais logo, se for essa a minha vontade, será por uma corrida. A melhor forma de dizer olá é encontrar os meus dentes com a carne que me foge. Por ora estou apenas contigo, que me guardas, meu amor. Eliz B.
Brave new world. Novas maravilhas do mundo há três apenas. Um bom aparelho de ar condicionado. Um bom triturador de papel, com capacidade para tratar em simultâneo um número significativo de folhas ou até papelão. E a Monica Bellucci. O mais são meros adereços de paisagem, electrodomésticos banais ou a Deolinda. Maravilhas é que não são. Segismundo.
Until the end of the world. Foda-se! Foda-se! Foda-se! Foda-se! Foda-se! Foda-se! Foda-se! Foda-se! Foda-se! Foda-se! Foda-se! Foda-se! Foda-se! Foda-se! Foda-se! Foda-se! Foda-se! Foda-se! Foda-se! Foda-se!, vinte vezes. O Zé Vitório, agora, usa trancinhas. O mundo está do avesso. Segismundo.
O cirquinho. Trinta anos seja do que for é muito tempo. De eleições autárquicas, então, é ainda mais. Não havia necessidade de tanto ilusionismo. O cesarismo da generalidade dos senhores regedores está bem e recomenda-se. Os campanários de paróquia reluzem nataliciamente. Nicky Florentino.
Escatel, ii. Diga-se assim, que corrupção é um nome abstracto, porque referência a um intangível. E que corrupto é um adjectivo, um predicador do sujeito, sujeito que, por acto ou concreto, não há. Em Portugal, é a isto que se chama boas festas. Segismundo.
Escatel, i. Diga-se assim, que a vida é uma puta refinada, que ora açúcar ora sal, açúcar quando o tempero necessário é de lágrimas, sal quando o que é preciso é doçura. E que nisto, embora não exista qualquer segredo, permanece o enigma. Segismundo.
Dans un boudoir introduisez un cœur bien tendre. Há uma diferença tanto conceptual quanto abissal entre ser sex machine e ser sexual machine. Explicar isto a alguém remete inapelável e inevitavelmente o explicador para a condição de máquina sexual. Uma máquina de sexo não dá explicações. Tão pouco as pede. Num caso ou noutro, consuma-as. Segismundo.
Dois... Em referendo, há um longo caminho até à abstenção. Não porque não. Não porque sim. Sim porque não. Sim porque sim. E ainda quando se alcança a abstenção, para diante, permanece o mesmo caminho. Segismundo.
Augusto. Finou-se o tirano dos Andes, um dos príncipes do também recentemente malogrado Milton das liberdades. Alguns já perguntam com beatitude para quando o passamento do Castro. Não o senhor dr. Ribeiro e, mas o outro. Nicky Florentino.
Tréguas ao bom juízo. O senhor Jacques Delors, ex-presidente da Comissão Europeia, rogou um «armistício psicológico» em relação à constituição da União Europa. Mais ou menos o mesmo que baixa a cuequinha, toma lá o supositório e imagina que nada aconteceu. Nicky Florentino.
Discípulo doméstico e nocturno de Pantagruel, escondido. Embora não seja apetite que o tome um número estugado de vezes, aconteceu-lhe esta madrugada, mais próximo das sete do que das seis da manhã. Dirigiu-se à cozinha, para se encontrar com a caixa das bolachas. Após tocar o interruptor, apercebeu-se ele de um grande aparato sobre a bancada. A cobrir esse aparato havia um pano grande. Fingiu que não viu e foi ao que ia. Aviado de bolachas, uma a ser mastigada e duas na mão, apertou-lhe a curiosidade. Pelo que tratou de ir averiguar. Havia três travessas grandes e uma pequena com arroz doce, descobriu, então. Numa delas notou um corte pequeno, quase insignificante, sinal de prova. Foi quando decidiu dar uma envergadura maior a tal sinal. Pegou numa colher de sobremesa e, devagar, cravou-a sucessivamente, acompanhando os riscos de pó de canela. Satisfeito, deteve-se quando metade da travessa, a maior, já exibia o fundo. E seguiu crente. Mais logo a senhora sua mãezinha vai pôr voz grave. E se houver visitas para o almoço, porque tal tipo de preparos usa a ter esse significado, então, porá ainda mais e a repreensão acontecerá diante de testemunhas. Caso, claro, ele compareça. Para comer ainda mais arroz doce. Segismundo.
Acácia, meu amor # x. Não sei que dia é hoje. Estou aqui, estou para demorar, embrulhado em languidez, como os amantes se embrulham nos afectos e nas carnes. Estou numa dieta de tempo, indiferente ao cerco. Olho sem olhar, sem vigilância, apenas para dar pose. Este olhar grave e sério, de atenção, é um disfarce que aprendi. Sinceramente, agora pouco releva o que vejo, que é nada. Estou contigo, sobre ti, e, neste instante, é quanto me basta. És quanto me basta. Outro apelo, se chegar, será de dentro de mim. Será apelo de fome, será apelo de carne para carne. Só então correrei. Eliz B.
Lugares. Paira uma ideia piedosa da pátria, nome para um mapa inteiro, unidade estatística com alvará de soberania e padroeira principal. Depois descobrem-se lugares insuspeitos e chagas dessa ideia. Barrancos. Camarate. Entre-os-Rios. IPQuatro. São Bento. São Caetano à Lapa. Água a mais quando chove. Seca e fogo quando não chove. Assim ou assado, a novidade e as safras do melão, do tomate, da uva, da azeitona ressentem-se. Todos os dias os portugueses oscilam entre uma ideia piedosa da comunidade que compreendem e os compreende e os lugares chagados que concretizam essa mesma comunidade. Nenhum de tais limites, a ideia ou os lugares, está disponível a referendo. É por aí, por qualquer um desses pontos, no entanto, que contactamos e evacuamos o que se pode chamar real nacional. Muitas vezes mar, às vezes Carolina. Mas, por pai nosso que estais no céu ou por imaculada conceição, sempre salgado. Segismundo.
Obscurantismo democrático. Democracia não é, não pode ser, sinónimo de transparência. Se é povo e se é poder, unidade mais obscura não há. Nicky Florentino.
and I know nothing. O senhor dr. Paulo Portas recusou o convite para prestar esclarecimentos à comissão do Parlamento Europeu que anda para aí a investigar sobre a trasladação, à regra de cão e por avião com escala em aeroportos nacionais, de eventuais suspeitos de terrorismo. Informou o fulano que nada sabe sobre o caso e, consequentemente, que o seu depoimento nada teria de útil. Confirma-se, portanto. Aqueles seus fatinhos com risca fina, à lord inglês, de quando andou emprestado à honra de senhor ministro de Estado, da Defesa Nacional e dos Assuntos do Mar, nunca foram de boa memória. Nicky Florentino.
O reencantamento do mundo. Falamos e entendemo-nos. Topamos os outros e as suas intenções à distância. Memoriamos e pressagiamos. Sabemos e conjecturamos. Vivemos. Não bastando isto, foi inventada a sociologia, essa espécie de afasia, pronúncia perturbada sobre as estruturas, os processos e as práticas sociais. Modernamente, é sobretudo por aí que o mundo se reinaugura mais enigma, ou seja, não se sabe bem o quê. Segismundo.
Dezembro após Dezembro. Esta é a sua prova doméstica da inexistência de deus e a prova da fraude chamada pai Natal. Enquanto as suas mãos permanecerem estranhas a tal ex libris, não há motivo para admitir a revisão das sentenças anteriores. Segismundo.
Polimeria. Propagandeiam a democracia como o manto do povo, de linho no verão, de lã no inverno. Engano. A democracia não é isso. Assim como não é a ganga cem porcento algodão puro para gentios. A democracia é para corpos nus. Pelo que, se é alguma cobertura, então, é terilene. A má fibra não engana. A comichão também não. Nicky Florentino.
A ordem dos limiares. A sociedade, essa inexistência que nos congrega, esteia-se sobre um ror de convenções. Parte dessas convenções está associada a prazos, idades. Há um prazo para levar a primeira vacina, há um prazo para começar a sofrer o primeiro ciclo do ensino básico, há um prazo para concorrer à habilitação de condutor de veículos motorizados e aí por diante, prazos relacionados com a idade de cada criatura. Porquê? Em rigor ninguém sabe, mas parece que, assim, as coisas se organizam mais facilmente. Emite-se uma certidão de nascimento e, a partir da data da parição, começa a contar uma miríade de prazos que afectam o nascido. Espanta, pois, que alguém destile sanha quando se admite instituir até que momento é lícito abortar ou, em versão elegante, interromper voluntariamente a gravidez. Porquê as dez semanas? Por que não nove semanas e seis dias? ou por que não dez semanas e um dia? Por convenção, obviamente. Ou, se se preferir, por sugestão da entidade soberana, a tal besta que, segundo Carl Schmitt, tem a capacidade de, mediante decisão, definir o estado de excepção, que é mais ou menos o mesmo que o avesso da regra. E que, segundo Walter Benjamin, para os degraçados é a própria regra. Segismundo.
Quadra e instinto cinegético. A paisagem cativa-nos numa espécie de fado comum. Cerco é provavelmente o seu nome mais exacto. Já foi a porra da bandeira da pátria com pagodes estampados, hasteada às esperanças estivais de doismilequatro. Já foi o colete fluorescente, armado no assento dos veículos automóveis. Agora é o pai Natal, tipo boneca insuflada inútil para aplacar necessidades orgânicas, a trepar pelas paredes e pelos telhados das casas. Na rua dele, por exemplo, existem quatro. E mãe perguntou-lhe por que é que ele queria saber do paradeiro da espingarda a pressão de ar. Segismundo.
Transcracia. No que é possível, a democracia existe sob determinadas condições. Não verificadas essas condições, ou verificadas parcialmente apenas, a concretização da democracia é ainda mais improvável. Para além disso, considerada no plano estritamente político, a democracia é somente um dos factores de composição do complexo social em que vivemos. Pelo que muitas vezes o que satisfaz os gentios ou lhes agrada não é decorrência da democracia, mas decorrência de uma outra dimensão ou de um outro plano institucional, não raro decorrência, mesmo, de uma das condições sob as quais a democracia é possível. Nicky Florentino.
Natal mas é o caralho! A identidade é um dos desafios que define um gajo que se esforça para ser liberal old fashion. Na prática, significa isto que quem é livre confronta-se com os seus limites. Ora aqui surge um problema. Um gajo, criatura como qualquer outra, tem que (con)viver consigo, sendo que é o produto de uma vontade ou de um acidente a que é alheio. A senhora sua mãezinha e o senhor seu pai conceberam-no e, por isso, é por determinação estranha que um gajo é neste mundo. O seu limite primordial, portanto, é um limite contingente, não determinado ou passível de controlo por si. Um gajo é obrigado à vida por outros. E é após e sobre tal obrigação que é possível a liberdade. Óquei. Mas em que medida é que a posteriori é possível implicar os respectivos progenitores e a porra do Estado?, rogando-lhes uma indemnização por danos morais. Não é que, em concreto, ele tenha motivos de queixa da senhora sua mãezinha e do senhor seu pai. Mas se o pariram e criaram em Portugal, sem que ele tenha a mínima responsabilidade no caso, alguém deveria pagar. Ele, claro, é uma vítima. Tanto que, ultrapassada a franquia dos dezoito anos, sequer lhe reconhecem o direito ao suicídio. Segismundo.
We’ll always have Paris. De quando em quando, o senhor dr. Luís Filipe Menezes restaura-se, configurando-se como promessa da pátria. Ele anda nisto, de se prometer, há mais de uma década. Muitos recordam o episódio em que, durante um conclave maior do PSD, a criatura foi vaiada por ter sugerido a existência de uma tendência na tribo com inclinações sulistas, elitistas e liberais. Mas esse não é o episódio mais confrangedor, entre outros, que protagonizou. A miséria maior do fulano, segundo as crónicas da época, foi ter-se refugiado em Paris durante o congresso do PSD seguinte, de modo a evitar desgraçar-se ainda mais. Consta que, aquando essas célebres reuniões magnas tribais, a criatura padecia de uma bizarra atracção pela poça onde insistia em meter o pé. Como é óbvio, sofreu as consequências disso. Até que um dia assomou à honra de senhor presidente da Câmara Municipal de Gaia. Onde se mantém e também tem arriscado e tentado algumas tonterias, entre as quais ter afirmado não se recandidatar à referida honra e, depois, volvido menos de um mês, ter dado o dito por não dito. Mas Gaia é apenas Gaia, o outro lado do rio. E ele aí anda. Valha-nos Paris. Nicky Florentino.
I got the no pussy blues. Escreveu o Filipe. “O corpo feminino ilustrava dois poderes: o da maternidade e o do prazer. Mães e bruxas, as primeiras pelo poder civil, as segundas pelo poder eclesiástico, foram convenientemente domadas”. Pelo que, em ordem, nunca mais as vassouras deixaram de ser o antepassado do aspirador. Apenas e só. Segismundo.
A (e)missão prossegue dentro de momentos. As festas são um período-detergente de concentração elevada. Facto que levanta, e ainda bem que levanta, uma ilusão dupla. Por um lado, sob a espuma, tornam-se invisíveis as águas cediças e o lodo em que assenta a comunidade dolorosa dos dias comuns. Por outro lado, com a espuma, julgando-a neve, as renas do pai Natal assomam mais facilmente aos territórios ocupados pela miséria e pela infelicidade desses mesmos dias. A grei revigora-se pelo engano. Segismundo.
Acácia, meu amor # ix. Interrompi o sonho. Ouço sinos, lá, ao longe. O que será? O almoço?, o jantar? Habitualmente os sons da carne não são tão agudos. Algo estranho anda nos chãos da savana. Estou curioso, confesso, mas também é certo que a curiosidade matou o gato. Por isso, agora, fico aqui, guardo-me na tua guarda. Irei às averiguações mais logo, quando houver penumbra e silêncio. Eliz B.
Campanha alegre & o menino Jesus, ii. Que nada mais. Que antes ser espanhol. Que o corso pré natalício é bonito, orgiástico, repleto de vermelho e lâmpadas de sortido colorido, como nos prostíbulos. A edição de hoje do Expresso, por exemplo, é acompanhada por um ror de suplementos comerciais, em que é sugerida a compra de um mundo melhor, cheio de coisas cintilantes. Que só não é feliz quem não quer opulência, por um lado. Mas o espírito é quem mais ordena - remix hegeliano para disfarçar a incapacidade -, por outro lado. A vida, a puta, é sem adenda. Os mortos de há um mês, os queridos defuntos, já ficaram para trás. Paz à sua alma. Agora é a natividade. Agora é o balanço. Agora é a continuação, a mesma merda. A paz, a harmonia. Na sola do sapato ainda está cravada uma pastilha elástica de ontem. Junto está uma pedrinha. É a única pedra na engrenagem. Segismundo.
Campanha alegre & o menino Jesus, i. Substantivamente, o folclore adventício que se foda. Aliás, aqui, neste antro, é natal todos os dias. Natal e páscoa. E, às vezes, o caralho também. Este é o princípio. Este é o fim. Segismundo.
Hot hell. Um momento. Ali não havia os junkies ou os bêbados típicos de qualquer piano lounge à beira da estrada, assinalado por sinais de néon de grande envergadura e carmim berrante. Em consciência, sentia anunciada uma caminhada incerta e longa até à próxima cama possível. Já não tenho idade para ser beatnik. Tão pouco tenho paciência. Ordenou mais um bourbon, após olhar para o fundo do copo que segurava. Eu fico. Acendeu outro cigarro e ficou. Por qualquer assombro, o fumo soprado soltou o colégio dos demónios que estavam agarrados às sombras e aos espelhos. Para além dos gritos ouvidos e do sangue em abundância verificado no chão depois, ninguém sabe o que aconteceu. O Marquês