O Bosingwa faz muita falta, mas o cérebro faz muito mais. O Farías a jogar largado na aba direita do hectare de Gelsenkirchen, tipo pistão descamisado, sem apoio prestável, é cenário que não assoma sequer ao espírito de Hamlet, desgraçado, órfão de pai, que vê fantasmas e sabe que o tio, que lhe matou o pai, anda envolvido com a mãe. Em termos futebolísticos, há piões a desandar que aparentam ter cabeça mais certa do que o mister Jesualdo Ferreira. Intendente G. Vico da Costa.
Tabuinha. O senhor eng.º José Pinto de Sousa tentou convencer os gentios pátrios de que tem uma cabeça kosovar em corpo sérvio. Um dia destes tanto pode quanto não pode, dependerá da veneta que lhe vier a dar, candidatar-se à honra de tornar a ser nomeado senhor primeiro-ministro. O caso é mais ou menos o mesmo que sucedeu com o processo de obtenção da licenciatura do fulano e com os projectos de habitação cuja autoria e responsabilidade ele assumiu. Mais tarde ou mais cedo será como ele disser que foi, independentemente de como tenha sido. A verdade é intrigante desde Pontius Pilatus e há quem sobreviva bem assim. Nicky Florentino.
MarçoAbrilMaio. Um de Março, Lisboa, Santiago Alquimista, Pop Dell’ Arte. Doze de Março, Lisboa, Santiago Alquimista, Caribou. Vinteesete de Março, Lisboa, Coliseu dos Recreios, Portishead. Doze de Abril, Porto, Casa da Música, The Kills. Vinteeum de Abril, Lisboa, Coliseu dos Recreios, Nick Cave & The Bad Seeds. Vinteetrês de Abril, Lisboa, Culturgest, Mão Morta. Vinteenove de Abril, Lisboa, Aula Magna, José González. Quatro de Maio, Lisboa, Aula Magna, Einstürzende Neubauten. Dez de Maio, Lisboa, Aula Magna, Diamanda Galás. Onze de Maio, Lisboa, Aula Magna, The National. Vinteenove de Maio, Lisboa, Lux, Animal Collective. Segismundo.
Vadim retro. Equívocos da vontade contra a soberania que não cai e vai e volta sem que o senhor major esteja na primeira fila a ver como é que se fuma sem a presença da brigada da asae para autoar hábitos maus ao que acresce o facto de um chato tocar sempre mais do que duas vezes e autoar ser autuar com ú e não com ó
Vadim retro. La mambo branca, agitar bem antes de usar, mexer bem, menear a anca como vodka martini, quase arte marcial, shaken, not stired, que não é marselhesa, ó shake dog shake, ó I’m shaking like milk
Casa de pasto. Lá em casa, de segunda a sexta, às vezes, mais vezes do que menos vezes, o almoço é cozinhado num tacho trinta. Valha o deus das fomes, tacho trinta. Metade disto é o número de comensais habituais, número que é volante e tende a pecar mais por defeito do que por excesso, porque ocasionalmente há visitas. Por causa dos horários, dos calendários, das conveniências e dos humores, não se encontram todos necessariamente à mesa, mas quase. Ainda assim, come-se à larga, no sentido do prato e dos cotovelos. Um está de dieta. Outro, que por estes dias voltou a pertencer ao rancho, não crê no jejum quaresmal e, excepto ele e a mãezinha dele - encharcada pela esperança de que o transviado torne ao redil devoto -, ninguém se incomoda com o caso. É por isto que começou a estação de, quando em casa, ele ir almoçar fora à sexta-feira. Segismundo.
No country for old men. Colocado sob o alpendre, para ser atingido pela expansão oblíqua da luz do sol, como se fosse uma peça de roupa estendida numa tarde soalheira de inverno, o velho, cativo da paralisia que o prendia à cadeira, deixava o seu olhar vaguear entre as pedras do caminho, demorando-o nos tufos de musgo que preenchiam os sulcos entre elas e serviam a rota das formigas. Absorto, o velho rememorava a sua presença numa trincheira enlameada, no limite da qual crepitava a metralha, ruído interrompido apenas pelo assobio e pela explosão posterior dos projécteis de calibre grosso arremessados pela artilharia inimiga contra aquela posição. Isto aconteceu há muitos anos, mas as recordações desta experiência ressurgiam-lhe com uma frequência cada vez mais maior, tornando-a demasiado presente, um eco histórico próximo, como se fosse a reposição de algo acontecido no instante imediatamente anterior. O velho não sentia as pernas. Estão mortas, costumava ele dizer ele, como todo eu, eu inteiro, deveria estar. Com um movimento lento de mão, enxotou uma mosca que lhe rondava a face. Instintivo, o gesto não interferiu no desfile das memórias do velho, que continuaram a embaciar-lhe os olhos, cravando-lhe com intensidade superior a sensação de impotência. Sentado na cadeira, com uma samarra sobre as costas e uma manta sobre os joelhos, o velho esperava sem esperar, entregue, como vencido, ao destino. Estava ele consumido nesta modorra, sem conseguir afastar-se do remorso de rendido à velhice e à incapacidade que o tomara, quando surgiu o gato que com ele partilhava a casa e as demoras dos dias. O velho bateu com a palma da mão no colo, anda, anda, modo de lhe manifestar o seu convite. O bicho, esguio e todo preto, aproximou-se, saltou para o regaço do velho e acomodou-se aí. O velho afagou-o com as mãos, passando-as alternada e demoradamente sobre o seu dorso. Naquele momento, o velho foi resgatado às suas lembranças e devolvido ali, à sua condição mortificada e presente. Ao mesmo tempo o gato começou a ronronar. Agora as mãos do velho acariciavam-lhe também a barriga e o bicho, regalado, arrumava o corpo de modo a retirar mais gozo tanto das carícias quanto do sol. Estava posta esta cena bucólica quando, passado algum tempo, surgiu uma sombra incerta no bordo do alpendre, que captou a atenção do gato. Esticou o pescoço, afilou as orelhas. Apurado o motivo da sombra, o gato focou a sua atenção predatória. O velho tentou sossegar o bicho. Em vão. O gato permaneceu numa posição tensa. Pouco depois esquivou-se às mãos do velho, que falharam a guarda, saltou para o chão e correu no encalço da ave pequena que, alheia à roda, sondava e debicava o chão. Ao desenrolarem-se estes acontecimentos, o velho, tu quoque, murmurou a acusação do abandono e tornou a sentir-se arrombado pela solidão. Na sequência destes eventos, anódinos para qualquer mortal não resignado, a miséria da condição do velho afundara-se em si como uma agulha que se crava precipitadamente na carne. Abandonado pelo gato como deixado pela vida, a vida de capaz, com pernas úteis, era como o velho se julgava. Por isso, após o gato ter arrancado em perseguição ao pássaro, quietou os braços e as mãos sobre o colo, induzindo-lhes uma dormência semelhante à das pernas. As pernas falhavam-lhe, agora era a vez de ele corresponder-lhes e falhar-lhes também, falhando-se a si e aos membros restantes. O velho rendia-se deste modo, convicto de há muito ser devido à morte e não à tortura que a vida lhe impusera. E, naquele princípio de tarde, uma vez mais regressaram-lhes as memórias de guerra, reconstituindo-se dentro de si a vala onde combatera o medo, o frio, a chuva, a arma encravada, o adaptador para a baioneta partido, o gás mostarda, os estilhaços da bombarda e das granadas, os destroços afiados da paliçada, o inimigo sob todas as formas, as visíveis e as invisíveis, todas letais. Naquela trincheira onde tombaram todos os seus camaradas, ele foi o único que sobreviveu, embora com as pernas e a vontade de viver mortas. Já não sou carne remexida, a força anulou-me, desistiu de mim, excepto para o sofrimento, desabafou o velho uma vez. Como suplício, a decrepitude tudo isto acentuava, a injustiça da sua sobrevivência e a injustiça da incapacidade de controlar as suas pernas. Aquela trincheira, que cada vez mais regressava a si e quase se instalara definitivamente em todos os seus tempos, os de acordado e os de sono, nunca deixou de ser a vala comum a que, puta de vida, a minha, desde aquele dia, se sentiu merecido. O Marquês.
Escala de Walden, iv. Por algum motivo, diferente da necessidade de inventar a economia ou a sociologia, a natureza equipou-nos simultaneamente para o desperdício e para as minudências. Segismundo.
Da grã urbanidade. A menina tinha um rebite cravado sob a beiça inferior e sorria. Ele carregava uma mala de viagem pesada e transpirava. Ela, de onde tu és? Ele, sou da Guiné. Ela, podes passar. Ele, por ser da Guiné? Ela, não, por poderes passar. Ele, agradecido por nada, então. Ela, De nada, também então. Segismundo.
Delicatessen. Não há palavras para manifestar com rigor o caso. É um fantasma, conhecido como o fantasma da carne. Inefável, como todos os fantasmas são. Sente-se, porém não se vê ou apalpa ou ouve ou cheira ou revolve na língua. Sente-se, testemunha quem o sentiu, suscitado a partir de dentro, do frémito tormentoso que assoma aos aflitos ou padecentes. Para tal fantasma não há anestesia ou terapêutica ou ghostbusters. Mais exactamente, e isto é a sua outra característica extraordinária, o fantasma nutre-se da cor do sangue, não do sangue, menos ainda da carne, como o folclore sustenta. Da cor do sangue, mesmo e só. Por processo inexplicável, fantasmagórico, ele suga o tom escarlate do sangue, enegrecendo-o. Quando se sente, desde o latejo mínimo até à palpitação lancinante, a dor sentida é a consequência do exercício deste gourmet fantástico. Existe pelos homens. Não gosta de fiambre, não aprecia bacon, detesta carnes fumadas. Excepto em caso de ocorrência de acidentes de trabalho, não frequenta açougues ou charcutarias. O Marquês.
A casa conforme o projecto. O mister Scolari é uma espécie de senhor engenheiro técnico da década de oitenta a assinar projectos de domicílio concretizados em lugares recônditos do município da Guarda, tipo Valhelhas. O jogo que a sua cabeça engendra é o mínimo de habitação possível em futebol. Tem paredes, tem telhado, tem portas, tem janelas, tem sacadas, tem varandas, varandins, escadas e até um guarda-redes. Falta-lhe todo o resto, guarda-redes incluído. Não é mal de hoje. Intendente G. Vico da Costa.
Sangue. À noite, deveria ser proibido as sobrinhas frequentarem as mesmas furnas que os tios. Ser tio é uma condição mais do que divina. Merece respeito. Um dos nomes da distância. Segismundo.
XX. Talvez uma da manhã. Ela entrou. Ele topou-a desde a entrada. Disfarçou. Quando ela passou junto dele, de mão dada com a amiga que ia adiante, avançando com dificuldade entre os corpos que apertavam, ele tentou uma, duas, três vezes assentar o punho cerrado sobre a sua cabeça, como se a martelasse. Não obstante o gesto denunciado e lento, eram porradinhas de simpatia que ele queria dar-lhe, ela esquivou-se as três vezes, para evitar ser despenteada. Tinha uns totós laterais à Pipi das meias altas. Agarrava um chupa-chupa gigante. Há vinte anos não era assim. Segismundo.
XXX. Há trinta anos, uma irmã precipitou-se sobre as fundações do que haveria de ser o novo edifício da empresa de telecomunicações que havia. Um murro foi a causa. Segismundo.
Outrora não é agora e vice-versa. O que o senhor eng.º José Pinto de Sousa assumiu ou não e acumulou ou não antes pouco releva agora. O chefe político não tem que ser o chefe moral. O que importa é que todos sejamos como ele, sem necessitar de renunciar ao próprio passado, mesmo quando não é bonito, e aprender com seu exemplo, o de outrora e o de agora. Homo ferus não tem pretérito perfeito. Nicky Florentino.
O regresso no dia do livro de Eliot. Parece ter passado despercebido o novo sentido folião do senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva. Instado a comentar as notícias recentes sobre práticas antigas do senhor eng.º José Pinto de Sousa, o senhor agora em senhor presidente da república sugeriu que os gentios fossem entrudar e que voltassem na quarta-feira de cinzas com a sua agenda de aflições políticas. Até lá, que celebrassem a folia, com descontracção. Mais ou menos como no ano em que o fulano, quando era senhor primeiro-ministro, lhe deu na veneta não despachar a dispensa da mão de obra sob seu mando, para gozo do carnaval habitual. Então eram outros os tempos. Não havia cooperação estratégica sequer. Nicky Florentino.
Ás de Espada. Citação. “Terminámos o serão com um campeonato de matraquilhos em fato de gala”. Poderia ter sido pior. Poderiam ter ido todas e todos sem roupa apanhar carqueja para pôr no arroz, a assobiar e a cantar como a Heidi, em tirolês. Ou poderiam ter acabado a noite a dar cabeçadas no joelho esquerdo da Eva Longoria. Segismundo.
Daqui a desrazão, a folia, a alienação, o tresvario, façam-se, pois, desenhos para referenciar e animar o diálogo, ó Habermas?, ú, ú, não há normais, não há saída que não seja entrada
O outrora homem Black & Decker. É de natureza. Qualquer um acumula a condição civil de artola com outras. Ninguém está em honra pública alguma em regime de exclusividade. Porque, para além de estar por honra eventual, está necessariamente por si também. Nicky Florentino.
Engenheiro coragem. O senhor eng.º José Pinto de Sousa assumiu a autoria dos projectos que assinou e a consequente responsabilidade pelos mesmos. O fulano revelou coragem. Porque, mesmo que eighties, a paisagem lavrada pelo seu cérebro não é bonita. Nicky Florentino.
Da soltura. Escreveu o Joaquim, “o laicismo é um caminho para a escravatura”. Poderia ser um caminho para outro lado qualquer, mas, não, escreveu o Joaquim, é para a escravidão, mesmo. Ele explica, “o direito à vida, à liberdade, à propriedade e à procura da felicidade são inalienáveis porque foram conferidos por Deus aos homens. Ao eliminar Deus o laicismo distorce, fragiliza e aliena os direitos que nos tornam livres e portanto é um caminho para a escravatura”. Ou seja, um gajo ou crê em deus pai todo poderoso, o grão emancipador da espécie, ou é apóstata e, portanto, cativo das paixões e das hermenêuticas circunstanciais, vertidas contra a espontaneidade divinamente (im)posta. É curioso como o Joaquim escarnece o juízo, supostamente também concecionado pela divina providência aos mortais. Compreende-se. O caso explica-se com uma parábola quase evangélica. Cite-se o Luís, “é preciso ser autista, auto-centrado ou completamente desprovido de imaginação para ter de convocar um terceiro quando se quer ver a mulher amada a foder com Outro”. É mais ou menos o mesmo quando a gaja se chama liberdade. Segismundo.
A prova empírica. A gravilha é áspera?, perguntou ela. Uma bofetada assestada clamorosamente na sua face, sem motivo aparente, permitiu-lhe as condições para saber a resposta. O Marquês.