ZX Spectrum. Dele, uma das memórias mais certas da infância é a competência precoce no uso de vocabulário interdito e contrário à decência. Para que conste, ele profere «o caralho» com propriedade desde tenra idade, para opróbrio materno sobretudo. Tal facto valeu-lhe uma reputação ingrata e discriminações sobejas, ditadas por uns quantos dos progenitores alheios, zelosos da formação e das companhias da respectiva prole. Nele, isto teve como consequência o desenvolvimento de uma dupla personalidade, facto que, a par da caderneta escolar, garantiu algum alívio das discriminações. Menino com rendimento de topo da escala não diz «o caralho». Bem, dizer dizia, mas os pais e as mães dos outros não sabiam e o que sabiam era o que contava. Para além disto, os que moviam uma vigilância mais lassa ao decoro tendiam a admitir que, mesmo que ele dissesse «o caralho», dizer «o caralho» não tinha consequências nefastas no rendimento escolar, que era o que importava. Ele era a prova. Tempos depois, já de liceu, tinha ele quase um contrato de avença com Wittgenstein, para explicar que quando dizia «o caralho» não o dizia necessariamente em sentido denotativo - o que muitas vezes o levava a ter que explicar também o que é que queria dizer denotativo e conotativo e que conotativo não tinha a ver com vagina dita em palavra ordinária -, que «o caralho» era uma expressão coloquial apenas, alguns dos outros, poucos, primeiro, e bastantes, depois, começaram a fumar, sem consentimento paternal e às escondidas das demais autoridades e tutelas. Com frequência, quando algum papá ou alguma mamã descobria tragédia tamanha, a par da admoestação e do sermão das boas companhias e das virtudes, lá vinha a humilhação da comparação com ele. O rapaz até poderia dizer asneiras, porém não as cometia. Bem, é verdade que ele não fumava, mas não é verdade que não cometesse asneiras. Cometia, não poucas, mas eram sem consequências visíveis ou remotamente visíveis, as asneiras que por quaisquer indícios, porque por alguma prova era difícil, podiam ser-lhe imputadas. Por isso, para despistar os acusadores, ele socorria-se quase sempre da mesma defesa, «fui eu o caralho é que fui». E a acusação, sem capacidade para avançar na demonstração inequívoca da culpa dele – até porque desde cedo ele renunciou à bem-aventurança da confissão sugerida pelo catecismo católico –, transformava-se em mera repreensão ao seu modo de defesa. Que, não obstante «o caralho», funcionava. Enquanto isto, já muitos dos outros fumavam e outros começavam a fumar. E ele o que queria era jogar chuckie egg ou pyjamarama. «Com o caralho», contraído na pronúncia como «cum caralho», era o que dizia quando as coisas se complicavam ou o cinzeiro se entornava sobre o teclado chiclete. Segismundo.
Teresa said...
(a mensagem anterior saiu com um erro do caralho..)
Comparado com "porra", caralho é uma palavra bonita. Do caralho é dizer porra.
Expliquei porquê, aqui.
http://cabradeservico.blogspot.com/
2007/12/umbiguismos-i.html
said...
Spectrum 48k. Caralho era o minimo que se podia dizer quando se passavam 50 minutos a olhar para as riscas no monitor, a ouvir triiiiiiiiiituttrrriiiiiiiiiiiiituttriiitut... e no fim o cabrão do jogo não entrava!
Abraço Ségio.
Pedro