2009-10-30
Um lugar trágico. O que é mais cru em quem é, deseja ou reclama ser português é o sentimento de pertença a uma personagem, portugal, a que apenas a distância pode conferir sentido. Ser parte de uma personagem assim, dar corpo a um corpo que não existe e que existe sobretudo através do corpo que se dá para ele e das ilusões e dos reflexos que decorrem de tal doação, é trágico. Os portugueses vivem à solta, respiram bem, fingem o respeitinho. Respiram bem em particular à beira-mar, onde o ar não é rarefeito e onde a faina calha apenas a alguns. Muitos já não conhecem o chão, abandonaram a dieta a couves, sabem o que é o spread, comem pastéis de nata. Mas, como antes, os portugueses continuam a sentir-se o princípio de uma continuação que já não os compreende. Provavelmente nunca os compreendeu. As contingências - ser português é uma contingência entre outras - são assim. Os portugueses ainda cospem e escarram no chão, mas cada vez menos, pelo menos se houver testemunhas. Ser português é uma narrativa que não chega a ser teoria e que não é literatura, não pode ser literatura. Ser português é a tragédia antes da tragédia, a burla, a condição farsante e antiga que só se sente através de sinais remotos da reunião, o hino, os ofícios nacionais e da soberania, os fúnebres incluídos, e da língua de todos os dias, dos pais e dos vizinhos. Já ninguém é assim, tão fingidor do sofrimento que sofre, tão padecente do fado ou do padrão da fatalidade. Agora, consequência de uma espécie de modernidade, a culpa é do estado e, melhor, do governo, que é a entidade que comanda supostamente o estado. Às vezes a culpa é da administração também, chamam-lhe burocracia. Já ninguém lhe chama cultura, porque era assim que lhe chamavam antigamente e antigamente é advérbio tradicional demais, quase invisível, esquecimento. Na teelvisão isto é ainda mais burlesco, patético e concentrado. A puta da ficção prolonga-se, estende-se, difunde-se. Agora também por cabo. Há canais noticiosos, especificamente noticiosos e opiniosos. Estes canais são quase canis, como os outros canais são. Não chega a ser aflitivo ou pungente. Uma certa insensibilidade à condição faz os portugueses perfeitos. Felizes também, melhor se na teelvisão, onde e por onde a fama acontece. Falassem os portugueses outra língua e o lugar deles, portugal, talvez não fosse muito diferente, por não poder ser. Segismundo.
2009-10-29
Tudo. Gosto quando tudo se fode. Tudo é pouco, está bem, porque o meu mundo é pequeno e não o desejo maior, mas gosto quando tudo se fode. Abusos e vícios melindram a malta. A malta é melindrosa, tão mais melindrosa quão menos precária. A malta compadece-se com o ministério público, guindastes e máquinas de lavar a alta pressão avariadas. Daí manda chamar-se alguém competente, o técnico, para consertar o equipamento. O período de garantia contra defeitos de fabrico e montagem já expirou. A mão de obra é cara, o custo da reparação é a pronto pagamento. Felizmente não é tudo um problema de lavandaria social. Já podemos comprar shampoo dois em um, para lavar e acondicionar o cabelo. Lustroso, sem caspa. Foda-se. Quando tudo se fode não significa que tudo é fodido. Foder é uma expressão de força. Mas tudo é muito, mesmo muito, não é um jogo de lego com as peças todas. Há sempre algo que fica de fora. Pelo que, na prática, foder é com jeitinho, selecção, não é à bruta, carregar num botão e, pum, omnipotência, tudo fodido. Tudo é muito, portanto exige muito. E a malta é melindrosa, tem sensibilidades, não aprecia confusões. Que se foda. Bruce Bílis.
2009-10-28
A estação de alguns meses depois de alguém ter chamado filho da puta a outrem. Chego tarde a esta estação, culpa da má criação que me fez assim e da procrastinação que tento. Por acaso não há por aí alguém disposto a chamar filho da puta a outrem? Somos todas e todos assim tão iguais? Pelo menos a mãe que nos distinga. Bruce Bílis.
2009-10-27
Small deaths. As mortes pequenas são as nossas. É dessas mortes que é a nossa senhora também. Bruce Bílis.
Cunnilingus and psychiatry brought us to this.* Antes catacrese do que catequese. Matei a puta que dizia ser viúva minha. Agora tenho fígados piores. Não sou o único. Ninguém é único. Segismundo.
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* Tony Soprano dixit in “I dream of Jeannie Cusamano”, episódio treze da época primeira d’The Sopranos.
2003/2024 - danados (personagens compostas e sofridas por © Sérgio Faria).