Um lugar trágico. O que é mais cru em quem é, deseja ou reclama ser português é o sentimento de pertença a uma personagem, portugal, a que apenas a distância pode conferir sentido. Ser parte de uma personagem assim, dar corpo a um corpo que não existe e que existe sobretudo através do corpo que se dá para ele e das ilusões e dos reflexos que decorrem de tal doação, é trágico. Os portugueses vivem à solta, respiram bem, fingem o respeitinho. Respiram bem em particular à beira-mar, onde o ar não é rarefeito e onde a faina calha apenas a alguns. Muitos já não conhecem o chão, abandonaram a dieta a couves, sabem o que é o spread, comem pastéis de nata. Mas, como antes, os portugueses continuam a sentir-se o princípio de uma continuação que já não os compreende. Provavelmente nunca os compreendeu. As contingências - ser português é uma contingência entre outras - são assim. Os portugueses ainda cospem e escarram no chão, mas cada vez menos, pelo menos se houver testemunhas. Ser português é uma narrativa que não chega a ser teoria e que não é literatura, não pode ser literatura. Ser português é a tragédia antes da tragédia, a burla, a condição farsante e antiga que só se sente através de sinais remotos da reunião, o hino, os ofícios nacionais e da soberania, os fúnebres incluídos, e da língua de todos os dias, dos pais e dos vizinhos. Já ninguém é assim, tão fingidor do sofrimento que sofre, tão padecente do fado ou do padrão da fatalidade. Agora, consequência de uma espécie de modernidade, a culpa é do estado e, melhor, do governo, que é a entidade que comanda supostamente o estado. Às vezes a culpa é da administração também, chamam-lhe burocracia. Já ninguém lhe chama cultura, porque era assim que lhe chamavam antigamente e antigamente é advérbio tradicional demais, quase invisível, esquecimento. Na teelvisão isto é ainda mais burlesco, patético e concentrado. A puta da ficção prolonga-se, estende-se, difunde-se. Agora também por cabo. Há canais noticiosos, especificamente noticiosos e opiniosos. Estes canais são quase canis, como os outros canais são. Não chega a ser aflitivo ou pungente. Uma certa insensibilidade à condição faz os portugueses perfeitos. Felizes também, melhor se na teelvisão, onde e por onde a fama acontece. Falassem os portugueses outra língua e o lugar deles, portugal, talvez não fosse muito diferente, por não poder ser. Segismundo.