Livrete dos anjos sujos
# xiv. Uma carta fechada, com um volume macio pequeno e o nome dela no destinatário, os olhos aí concentrados. O encontro foi fortuito, estava entre a tralha que constituía a memorabilia de quem conseguiu sobreviver a mais de oito décadas, alegrias, desalentos, acidentes, doenças, festas, baptizados, casamentos, funerais e romarias, guerras, crises, oscilações nas bolsas, nos mercados, na cotação das moedas correntes, nas taxas de juro e, mais recentemente, no spread, regimes, governos, eleições disto e daquilo, nacionalizações, privatizações, viagens, marido, as amantes dele, os amantes dela, filhos, netos, telefonia, televisão, telefone, telemóvel, grafonola, giradiscos, leitor de compact discs, ipod, iphone, ipad, holocausto, apartheid, uma rusga da polícia no início dos anos setenta, experiências alucinogéneas, folhetos de promoções e publicidade e novidades gerais de que leu ou ouviu notícias. Apesar de desconhecer qual fosse o seu conteúdo, aquele envelope agarrado por ela parecia acumular história, sentimento e espanto. Sentiu uma tremura dentro da tremura que a idade lhe trouxe às mãos. Rasgou-o com cuidado, curiosidade de gato e a intenção de, caso viesse a encontrar algo revelador ou surpreendente, expiar o peso da viuvez naquele momento. Leu a denúncia contida na carta, poucas palavras, Malaquias Krunegård tem asas, sete de novembro de mil novecentos e cinquenta e um, uma pena amarelecida junto. Nada que, bela merda, ela não soubesse já, voltando a solidão e a certeza dos dias mesmos a carregá-la após aquele intervalo súbito. Tentou telefonar a um dos filhos, o segundo, o único entre os cinco que também tinha asas. O sinal de chamada soou uma, duas, três, quatro, cinco vezes, a ansiedade foi crescendo ao ritmo dos toques, até que ouviu uma voz a anunciar a chegada à caixa de mensagens. Acto contínuo, este palerma nunca atende quando é preciso, desligou. Eliz B.