Miraldino, o relojoeiro (capítulo dois). olho para a ameaça das horas, para o modo como pendem e se precipitam sucessivamente, e fico louco, completamente louco - também não há outra maneira de ser louco, não é? -, não sou capaz de mais do que sentir o perigo prenunciado pela demora a acontecer, e vem aquela emoção avassaladora que irrompe e empurra tudo, como se me encostasse à parede e asfixiasse, estás a perceber?, como se aquele momento fosse simultaneamente a minha sentença e o meu legado, compreendes?, o meu degredo em tempo morto, o que me faz enervar e transpirar, ele tinha o rosto congestionado, o suor escorria-lhe desde a testa, parece que fico com o corpo alagado, o corpo todo alagado, abriu o lenço, passou-o pela face, fico mesmo sem saber o que fazer, autenticamente, fico paralisado, à espera, e a espera angustia-me ainda mais, muito mais, é um sufoco, deliro por causa da febre, imagino três rodas dentadas gigantes, sem função, separadas, como se o tempo já não pudesse fluir no ritmo exacto e próprio do tempo, guardou o lenço, olhou para o pulso esquerdo, e, então, começo a ter medo que as horas caiam desamparadas, puxou a manga do casaco para cobrir o relógio, não sei se estás a perceber, já não é o tempo a morrer e a arrastar-me com ele, é a incerteza, a incerteza sobre o momento, a incerteza que se estende a partir daí, a incerteza sobre tudo, sobre a minha hora, qual será ela, uma angústia brutal. aconteceu silêncio por alguns instantes, está na hora, o padrinho entregou-lhe a pistola e assentou a mão livre sobre o ombro dele. é agora?, ele vacilou. é, confirmou o outro, que já havia recolhido a mão e começara a afastar-se. O Marquês.