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Albergue dos danados

Blog de maus e mal-dizer 

2009-12-04



Paolo Rossi que se foda. Interessa-lhe mais o espasmo do que o pasmo. Não ceder à melancolia, a nostalgia se foda, jamais ir com a raivinha. Ele diz o caralho, com o pormenor do artigo definido, e disserta sobre gramática e mundos que já não há. Sobretudo os mais novos não sabem o que distingue o sentido denotativo do sentido conotativo. Se mete o caralho pelo meio, julgam que tem a ver com conotativo. Pois tem, pois tem, mas não necessariamente. Também pode ter a ver com conação. Passa-se do dicionário para além de Piaget. Mas há quem prefira falar sobre Freud, ó Freud, a líbido. E sobre Lacan?, sobre Lacan não pode ser, soa a ministro, aquele lacónico, foda-se. Têm razão. E o sentido da vida?, pois claro, o sentido da vida, esse, exactamente esse, o da vidinha. Os outros querem assim, a ambição mal disfarçada sai-lhes dos modos. Se se deixasse, comportar-se-iam como suseranos. Gostam de mandar vir. Até que alguém diz vamos lá conversar um bocadinho. Ele cala-se. Conversar sobre quê? A ele apetece-lhe falar sobre a bruxa que havia na rua dele, mulher de um latoeiro chamado Pardal. Ela dizia a iemanjá e ele pensava o que caralho é a iemanjá?, pensava exactamente assim. Indiferente às elucubrações dele, a bruxa, que também era vizinha, continuava a falar, a falar, a falar. E ele continuava a pensar, é importante não confundir passo com paço, compasso com com passo. A homofonia é fodida. E agora? Às vezes ele diz os sociólogos melhores são os mortos. Não é provocação, é sentimento. Os vivos reproduzem a inutilidade, expandem-na, como espuma de poliuretano. Tudo fodido, tudo social. A propósito de social, a ele acontece apetecer-lhe frequentemente batatas fritas às rodelas escorridas sob papel pardo e pudim flan. Fast food à moda antiga, ao pudim chamavam instantâneo. Mas não era, demorava mais do que um instante, o caralho do mandarim tinha que ir ao lume e depois tinha que arrefecer para não fazer doer a barriga. Tempos fodidos, os da espera. Muita ponta dos dedos queimada, muita unha revestida com açúcar caramelizado para lamber e compensar a dor, às vezes dor do caralho, com direito a bolha. Coisas simples, portanto, de quando menino, de quando ele já dizia o caralho com as sílabas todas e a tónica certa, como manda a puta da sapatilha. Regressando à parte interessante do enredo, a meio da rua dele, no encontro com a travessa dos poços, em frente ao hospital velho - nunca houve hospital novo, é mesmo assim, o que é que se há-de fazer? -, em muitas ocasiões ali estava a bruxa, casada com um latoeiro mirrado, meio corcunda, que fazia regadores em miniatura a partir de latas de milo para ele, e ela falava sobre a iemanjá e invectivava qualquer circunstante que passasse para o grémio da lavoura ou para aquele lado. Na volta não repetia as imprecações. O que estava dito, pragas ou o caralho, ela não repetia. Havia naquele exercício um método, uma sistemática filha da puta. Porém ele não se impressionava com aquela loucura, sentia apenas o incómodo de a conseguir tolerar, de lhe dar atenção, e, por aí, sentia a culpa de a incentivar. Em rigor ele não sentia culpa, tinha o cérebro ainda fresco, antes da gestalt, mas já não antes da gestapo, porque lá em casa havia livros do major Alvega e alguém explicou-lhe que havia uns maus piores do que os maus, péssimos, caralho, tentava ele impressionar com o domínio dos graus dos adjectivos. Até que um dia ele conheceu o Rabah Madjer. E estava tudo escrito, que haveria de ser feliz, mais ainda, apesar de entretanto ter padecido sob o Wrexham e o consulado do mister Ivić. A primeira vez que viu Rabah Madjer a jogar foi em gijón, ele sentado no café central, tinha faltado à última aula do dia, mais do que passado a português, em mil novecentos e oitenta e dois. Havia duas alemanhas, a ddr, do lado de lá, e a fdr, do lado de cá - aqui chamavam-lhes rda e rfa. Porquê duas?, ele sabia mal. Estava relacionado com o comunismo ou o caralho. No primeiro jogo do grupo dois da fase final do campeonato do mundo realizado em chão espanhol, os alemães do lado de cá foram derrotados pelos argelinos, dois um. Madjer, aquela cara foi fixada, marcou o primeiro golo da partida, após Schumacher ter dado o corpo a um remate de Belloumi, que ressaltou para a direita do ataque argelino, onde o com o número onze nas costas surgiu em passe de bailado, a tocar a bola com souplesse, facturando (prova vídeo). De onde vinha aquela criatura? E, depois da bola ao centro em consequência do empate por Karl-Heinz Rummenigge, aquela jogada que valeu o segundo golo dos argelinos? O que era aquilo? Schumacher na baliza, Hans-Peter Briegel lateral esquerdo com as meias para baixo, Paul Breitner um barbudo, Pierre Littbarski um canhoto franzino, Felix Magath com cabelo, Horst Hrubesch parecia um velho careca, Uli Stielike lateral direito disfarçava melhor a velhice, e Rummenigge, tudo gente esforçada, boa de bola - Hrubesch era um bocadinho tamanco, mas tinha uma força descomunal, para quem parecia um velho -, estavam a ser batidos por uma selecção de criaturas com nomes mais estranhos do que os alemães. Rabah Madjer. E Belloumi e Kourichi e Dahleb e Zidane. O caralho. Que mundo era aquele? Segismundo.


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