A deus, por permitir-me a graça da transgressão. Vezes muitas, talvez demais, a verdade é um assunto clínico. Como os conceitos, deus habita o cérebro. Promanam daí, da ideia congestionada, as minhas fadigas e os meus acidentes maiores. Choro quando me dizem ou prometem que o capitalismo há-de falir. Depois recomponho-me e rio. Sou resistente. Tenho em intenção o esboço do manifesto do epicurismo burguês. O motivo é simples. Os portões das quintas impressionam-me. Os homens da segurança também. Mas as fardas deles incomodam-me. São demasiado padronizadas e limpas, urbanas, enfim. É com esforço que me liberto do preconceito e da necessidade. Por algum motivo nunca fui fatalista. Estimo-me livre e culpada. Basta-me a culpa para salvar-me. Os meus vizinhos, ela e ele, têm vergonha da culpa. Ostentam apenas a roupa e o carro. Cochicham no elevador, para não se ouvir o que dizem. Têm a culpa dos tristes, que não podem assumir. Ele, por exemplo, não toma banho todos os dias. Onde o gel falha, percebe-se-lhe o cabelo oleoso. Ela carrega no blush e pinta as unhas. Provavelmente são postiças. Nunca os vi com as mãos entrelaçadas. As pulseiras dela chocalham, vibram o choque metálico. Às vezes as gravatas dele têm nódoas. Quando subo no elevador, vou de frente para ela e ele, para contemplar o par. Assumo a culpa. Não sou voyeur. A viúva.