o sinédrio das abjurações, i. os nervos estremeceram-lhe. a cerimónia já tinha começado. os lugares com assento estavam ocupados e havia uma fila nos corredores juntos às paredes laterais do templo, que tinham imbutidos painéis de azulejo alusivos às estações do calvário. a liturgia da cerimónia era simples, assim como simples era a sua encenação. mulheres à frente, homens atrás, e durante o exercício da oração e da homilia, através de gestos e de metáforas, cada compungido entregava o seu arrependimento e o seu temor à instância da indulgência suma e, em retorno, recebia a absolvição, como se o registo das faltas praticadas por si tivesse sido apagado tanto na sua ficha pessoal quanto na memória comum. porque a cerimónia já tinha começado, foi durante uma pausa do ritual para introspecção que ele avançou pelo corredor central, em direcção ao altar. aí, colocou as mãos sobre as abas do púlpito e, interrompendo o compasso de silêncio, disse eu não tenho propriamente um plano para a salvação, tenho uma alternativa demiúrgica. se fosse deus, eu não teria criado o mundo, não me teria implicado directamente na sua feitura. pelo contrário, teria criado deuses para criarem o mundo, ou seja, teria substabelecido a empreitada da criação a outros. depois, feita a bola, durante o jejum matinal teria urinado sobre ela, de modo a, por chuva ácida e dourada, criar os mares e a ilusão do ouro líquido. e a seguir, para complicar tudo, accionava o autoclismo e ficava a observar o que resultaria de tal caldo primordial. não creio que o mundo feito assim fosse pior do que o nosso, este, que deus nos deu. O Marquês.