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Albergue dos danados

Blog de maus e mal-dizer 

2009-01-30


Hipocrisia, o melhor de todos os regimes políticos. Um excurso.

1. Porque o processo democrático é um dispositivo de desilusão social, o cinismo preenche o espaço de amortização interior necessário ao regime, espaço entre a desilusão e o limiar de deslegitimação e que compreende as atitudes e os comportamentos de índole hipócrita. Atente-se.

2. Como qualquer regime, a democracia montada institucionalmente cauciona o exercício do poder. Mas fá-lo sobre a ilusão da dispersão equitativa da soberania pelos gentios e, portanto, pela sugestão de que - sendo o povo unido e soberano - não há dominados e menos ainda exercício de dominação. Ora é óbvio que no âmbito do processo democrático há dominantes, constituídos e escrutinados pela força do sufrágio ou da nomeação - e pelas forças sob tal força -, assim como há dominados, o granel dos gentios, vulgo povo. No entanto, na concepção encantada que é o projecto democrático, a dominação exerce-se através da burocracia e da aplicação sine ira et studio de regras gerais, operação a rogo e sob o nome e o interesse do povo, ó, o povo. De tal modo que os órgãos de soberania, embora eximidos prudente e sanitariamente de gentios, são concebidos e entendidos como expressão da vontade popular e como prosseguindo o bem comum.(1) A ficção não é apenas bonita, é também lustrosa e suscita a sensação de justiça, quando não de perfeição, ao ponto de fazer Pangloss parecer um pessimista deveras melindrado com a puta da vida.

3. Neste sentido, considerando um dos vectores da relação consubstanciada no princípio da representação política, o cinismo é uma das expressões da insubordinação democrática.(2) E é-o de modo sublime, porquanto, ao mesmo tempo que converge com os direitos e as liberdades fundamentais, concretiza o axioma da caravana que passa enquanto os cães rosnam e ladram. Por outras palavras, os gentios protestam, exercitam a voz, execram quem os governa e administra, mas os eleitos continuam eleitos e os nomeados continuam nomeados, a governar e a administrar, sob a garantia do respectivo mandato. É um facto que qualquer mandato pode ser interrompido, mas a interrupção acontece apenas quando verificadas determinadas condições e a maior parte das vezes o que desencadeia tal interrupção é a vontade do mandatado ou um procedimento com impulso e tramitação institucional, pautado por normas e conduzido por instância administrativa, política ou judicial, certificada e constituída - o que significa com competências atribuídas e reconhecidas - para o efeito. Na situação política ideal de autoridade, os gentios apenas poderiam latir, manifestar as suas dores ou os seus prejuízos, nunca rosnar ou ladrar, ameaçando e estorvando o processo de exercício político e administrativo corrente. Juízo com alcance e consequências maiores poderia ser exercido apenas em momento e circunstância de auscultação ou sufrágio. Porém a realidade é diferente. Os gentios manifestam-se, enquanto turba, largados na rua e constituídos em multidão - não em povo -, e manifestam-se difusamente através da opinião e do cinismo que exalam em atitudes e comportamentos. Mas, atenção, este é apenas um dos fluxos do cinismo de que se nutre o processo democrático.

4. Como cinismo paga-se com cinismo, as senhoras e os senhores constituídos por eleição ou nomeação não se limitam a ouvir os gentios a rosnar ou a ladrar e a sentir o incómodo e a inconveniência da hipocrisia popular. Em consequência, as senhoras e os senhores batem com a mão no peito, exigem respeito às massas assanhadas e insolentes e, en passant, derramam a declaração solene de serviço público, vertendo as orações de seriedade e de sinceridade que têm de ser e que, porque ficam sempre bem, as circunstâncias tanto ordinárias quanto extraordinárias recomendam. Como auferem em conformidade com as palavras difíceis e as siglas que sabem pronunciar, quem em prestação senhorial veste melhor do que os gentios, toma refeições em restaurantes caros e há até quem tenha direito a carro e motorista. Daí que senhoras e senhores abominem e maldigam os gentios, assim como a ignorância e a ingratidão que destilam e infunde o seu cinismo. Se e quando podem ou se proporcionar-se sem prejuízo de monta, as senhoras e os senhores, montados no mandato respectivo, mandam recado ou acertam contas com os gentios mais arrebitados ou que se reveleram mais belicosos e desagradáveis. Não obstante, à cautela, bendizem o povo, ó, o povo, que ninguém sabe bem quem é, porque a propriedade distintiva da democracia é justamente ser um regime de ninguém, zés incluídos. Para além disto, às vezes, porque as tentações são o que são, as senhoras e os senhores aproveitam e fazem pela vidinha e pelas conveniências, porque o bem comum, entendem, é também o proveito próprio - este está encapsulado naquele -, quanto mais não seja porque não mataram alguém e vivem da política como outras e outros já viveram ou vivem e, bem feitas as contas, não há-de vir daí grande mal para o mundo, porque o mundo é muito grande e o orçamento do estado também. E tudo isto é sublimado em honra e sem diluir a ilusão e a esperança dos gentios de que na próxima ronda eleitoral ou de nomeações os problemas poderão ser resolvidos tout court ou resolvidos de modo mais eficiente.

5. Porque tolera e, mais do que tolera, obriga o cinismo, o processo democrático subsiste assim. O que significa que, em tantas ocasiões usado como indicador de erosão do regime, o cinismo é afinal e simultaneamente um factor e um índice da sua resistência. Apenas num cenário de cinismo excessivo e duradouramene excessivo, de parte a parte, insensível ao estado da ficção democrática, é que tende a acontecer o desalento e o despudor e, daí, a consequente tentação de resolver radicalmente o processo democrático, substituindo-o por outro. Todavia tal insensatez não convém às mulheres e aos homens. E não convém, não porque contraste gravemente com o estado da alienação associado ao processo democrático, porque na tensão entre os cinismos possíveis, o senhorial e o de extracção gentia, acontece o governo e a administração da coisa chamada res publica. Não é edificante, é apenas uma segurança. Contra os desvarios dos gentios e contra os desmandos das senhoras e dos senhores em honras e sinecuras públicas. Bem vistas as coisas, vistas como elas são, antes a hipocrisia do que a tragédia. Nicky Florentino.
__________
(1) A expressão «bem comum» é estúpida porque, sendo «bem» uma categoria moral - e, portanto, gregária -, o bem é intrinsecamente comum. Caso não seja comum - isto é, seja particular -, o bem não é «bem», é outra coisa qualquer, benefício, proveito ou assim.
(2) Insubordinação é mais do que insatisfação, é insatisfação com consequência, ainda que não com tanta consequência que vá além da perturbação ou transmute definitivamente insatisfação em satisfação, qualificando dominados como dominantes.


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