primavera de mil novecentos e setenta e sete. o varrão estava sob mira. mais próximo, sete podengos faziam-lhe o cerco. antes correram no encalço da presa sem obedecer a qualquer formação. os ladridos da perseguição levantaram um cenário atroz no bosque e o seu eco chegou às casas imediatamente depois da última linha de árvores. os cães venceram em velocidade o javali, alcançando-o no meio de uma clareira. à primeira tentativa para o filar, o porco-bravo investiu sobre o cão mais próximo, obrigando-o a recuar. depois tentou retomar a corrida, mas entretanto os outros cães cobriram-lhe os diversos flancos de fuga. rosnavam, ladravam, mostravam os dentes, avançando alternadamente sobre o javali, fazendo-o rodar de modo a expor-se às mandíbulas dos que se posicionavam atrás de si. em determinado momento, o javali inverteu o sentido de rotação, atingiu e desequilibrou um dos cães, avançou e afocinhou sobre ele, cortando os ganidos lancinantes do canídeo, e esventrou-o com as suas presas. ao mesmo tempo, os outros cães precipitaram-se sobre o lombo e os quadris traseiros do javardo, cravando aí os dentes, tentando rasgar-lhe a carne e derrubá-lo. grunhidos agudos silvaram na clareira, fundindo-se com os latidos de um dos cães. o javali desenterrou o focinho das vísceras do cão agonizante e, reagindo ao ataque, curvou-se sobre a sua esquerda. livrou-se de dois cães, ferindo um deles, mas o peso e o modo como estava filado pelos restantes fê-lo ficar imobilizado. cedeu uma pata, depois outra. caiu. levantou-se novamente e o vórtice do combate, envolvendo o porco-bravo e os cães, tornou a preencher violentamente aquele chão, levantado pelos grunhidos e pelos ladridos. do rodopio de carne, do embalo e do embaraço dos corpos dos animais, do modo como um se tentava esquivar e os outros o tentavam tomar, saltava sangue, que, em forma de mancha e de salpicos, tingia a vegetação circundante, a erva, as azedas, os trevos. subitamente cinco podengos, um - aquele ferido - estava mais afastado e parecia limitar-se a incentivar com latidos, estavam sobre o varrão, mordendo-o com aferro, a trincar-lhe o lombo, o pescoço, as orelhas, os quadris. a resistência do javali diminuiu até cessar. acompanhou-a o estrépito da batalha, triunfou o silêncio. ele baixou a espingarda, abriu-a, retirou o cartucho e guardou-o no bolso mais largo das calças. depois colocou a arma aberta, como quebrada, sobre o antebraço esquerdo, entre o cotovelo e o carpo, e foi ao encontro dos cães. desceu o plano inclinado da vertente a nascente da clareira. a doze passos da cena começou a assobiar, para acalmar e atrair a si os cães. a oito passos parou. agachou-se e verificou o ferimento do único cão jacente e a ganir. ergueu-se e, acto contínuo, ao mesmo tempo que avançou mais um passo, tornou a carregar a espingarda. colocou o cartucho na câmara, levantou o cano da arma até o encontrar com a coronha, destrancou a patilha de segurança, apontou e premiu o gatilho. o estrondo do disparo ecoou antes do silêncio tornar a preencher a clareira. lacerado, o javali jazia a sete passos. dois cães mortos. um tiro apenas. O Marquês.