<body><script type="text/javascript"> function setAttributeOnload(object, attribute, val) { if(window.addEventListener) { window.addEventListener('load', function(){ object[attribute] = val; }, false); } else { window.attachEvent('onload', function(){ object[attribute] = val; }); } } </script> <div id="navbar-iframe-container"></div> <script type="text/javascript" src="https://apis.google.com/js/platform.js"></script> <script type="text/javascript"> gapi.load("gapi.iframes:gapi.iframes.style.bubble", function() { if (gapi.iframes && gapi.iframes.getContext) { gapi.iframes.getContext().openChild({ url: 'https://www.blogger.com/navbar.g?targetBlogID\x3d5515885\x26blogName\x3dAlbergue+dos+danados\x26publishMode\x3dPUBLISH_MODE_BLOGSPOT\x26navbarType\x3dBLUE\x26layoutType\x3dCLASSIC\x26searchRoot\x3dhttps://alberguedosdanados.blogspot.com/search\x26blogLocale\x3dpt_PT\x26v\x3d2\x26homepageUrl\x3dhttp://alberguedosdanados.blogspot.com/\x26vt\x3d-7878673483950887896', where: document.getElementById("navbar-iframe-container"), id: "navbar-iframe" }); } }); </script>
Albergue dos danados

Blog de maus e mal-dizer 

2008-10-30


manual de sobrevivência. rodou o copo entre as mãos, fazendo balançar os dois dedos de bourbon. tens frio? ele levou o copo aos lábios, depois respondeu não, estou bem. uma e outro recostaram-se. ontem estive a falar com a filha dele, pareceu-me desanimada. levaram muito tempo a descobrir a doença de que ele padecia, afinal era um mal daqueles sem importância, que, se detectado logo ou quase logo, teria tratamento, que não teve, porque o diagnóstico foi tardio. a demora do processo agastou-a tanto quanto vê-lo sofrer, sem cura e sem paliativos, a definhar dia após dia, hora após hora. o homem desmoronou-se diante dela, ela testemunhou toda a degradação dele, a física e a moral. um dia era um homem possante e activo, lúcido, severo, mas lúcido, e no dia seguinte estava retido na cama de um hospital, doente, fragilizado, sem reacção e ânimo, a desejar a morte. ele interrompeu-a. sofreu muito? ela passou a mão pela franja e pelo cabelo escorrido e prendeu-o atrás da orelha direita. julgo que sim, pelo menos ela deu a entender isso, deu a entender que foi uma jornada de calvário longa. após um compasso de espera, ela embalou o elogio. ele era um homem notável, sabes?, empreendedor, honesto, ajudou muita gente. há muita gente que está-lhe agradecida, muita gente, mesmo, empregados, vizinhança, os moços da associação, os outros do grémio, a Clementina, o Arnaldo, o Horácio, o Abílio, a Mercedes - recordas a Mercedes?, recordas a história da tomada da herdade? -, o filho da Mercedes, o Paulo, muita gente, muita gente.

veio uma trupe de moscovitas do alandroal, do redondo, de reguengos, de portel e até do alvito e da vidigueira. vieram com forquilhas e espingardas, como cães. os desgraçados pareciam mastins atiçados pela raiva ideológica, com um de reguengos a incentivar a seita, dizendo esta terra e tudo o que há nela pertence-vos, é do povo, coitados. entraram na herdade e destruíram tudo, incendiaram os tractores, a cortiça, destruíram tudo, tudo, até os currais e a cavalariça. fizeram trinta por uma linha, mas ele não saiu de casa. quando o quiseram expulsar, tiveram que ir buscá-lo. aqueles que foram à frente recolheram a boina na mão e limparam os pés no tapete antes de entrarem na casa, ainda traziam o respeito, mas a canzoada que os seguia, os que vinham atrás, entre eles o tal de reguengos, começaram a empurrar e aos gritos. com dois tiros, que rebentaram o estuque do tecto, lembram-se daquele arranjo bonito que havia no hall?, e com a voz dele, quem é que está a entrar dentro da minha casa sem ser convidado?, deteve-os ali. entretanto chegou a gnr e, como o comandante estava feito com eles, os arruaceiros, quis que ele entregasse a arma. ele não só não a entregou como ordenou à gnr que fizesse aquela gentalha sair da casa dele. sempre de arma em riste, para o que desse e viesse. tomaram-lhe as terras, não a casa, terras que ele recuperou mais tarde, porque os preguiçosos, com a mania das sestas, dos descansos, das folgas, das regalias e mais não sei o quê, não foram capazes de dar conta do recado, de as amanhar como deve ser. sem tractores, mal conseguiram arranhar a terra, cresta pelo sol. também abandonaram a maior parte da vinha, porque só sulfataram as áreas próximas dos pontos onde havia água. não admira que o raio da cooperativa tenha falido. aquela gente precisava de mando, não tinha orientação. quantos não gastavam a jorna, pequena que fosse, em vinho e deixavam os filhos e as mulheres entregues à fome e à miséria?, quantos? desorientados, assim deus os fez. mas não os fez a eles apenas. providente, porque é divina a sua providência, deus também fez outros, os capazes, para lhes dar sentido e sustento, na mesma terra, mas terra que, ficou provado, não era e não podia ser propriedade deles. deus entregou a terra a quem é capaz de arrancar dela proveito, para si e para outros, porque os proventos da terra não são para sustento exclusivo, são para outros também, para suprir igualmente as precisões alheias. mas vieram os tontos com a mania da igualdade e da fartura, querendo tudo para todos, e deu a desgraçada que deu. acaso tal ordem fosse possível, deus teria-a providenciado assim desde o princípio. se não a fez assim e assim não a concedeu aos homens, não foi por ingratidão, porque deus quer o melhor para os seus filhos, todos os seus filhos. se não a fez assim e assim não a concedeu aos homens, aos homens e às mulheres, foi porque só alguns têm capacidade de aproveitar a fortuna da natureza, através das artes do mando e da lavoura.

muita gente, muita gente. ele repetiu a pergunta, sofreu muito? surpreendida com a repetição, ela procurou-lhe os olhos, como se tivesse necessidade de confirmar a presença dele ali, naquela sala. já te disse que sim, julgo que sim. não tenho a certeza, mas, pelo que a filha dele disse, julgo que sim, sim, sofreu muito, quase de certeza. ele apertou o queixo com o anel formado pelos indicador e polegar da mão esquerda. ainda bem, sussurrou. ela ouviu o sussurro porém não o percebeu. tens frio?, insistiu ela o seu cuidado. não. ele tornou a rodar o copo entre as mãos, avançando-as e recuando-as alternadamente sobre a superfície vítrea. queres mais?, interrogou-o ao mesmo tempo que esboçou um gesto que pronunciava a intenção de alcançar a garrafa de cristal. ele recusou a oferta com um sinal, recolheu o copo sobre o colo. eram poucas as suas virtudes, menos do que as viúvas que lhe sobreviveram, reagiu ele ao elogio que ela havia desfiado. dizem que era um bom rapaz, apesar dos seus mais de setenta anos. bem, bom não era, rapaz também não. era um, um apenas, acrescentou ele. ela levantou-se incomodada com aquele discurso e virou-se, oferecendo-lhe as costas como manifesto do seu desagrado. ele seguiu-a e disse em perfeito, ele foi um. em mais do que perfeito, ele teria sido um. ela ouviu-lhe a aproximação e, sem o enfrentar, permanecendo de costas voltadas para ele, corrigiu-o, ele foi mais do que um, ele foi. depois sentiu um calor súbito que susteve-lhe as palavras, estancando-as no silêncio. algo interrompeu-lhe abruptamente a fala, calou-a. o sangue, solto pela lâmina que ela não constatou, escorria-lhe pelo pescoço. O Marquês.


2003/2024 - danados (personagens compostas e sofridas por © Sérgio Faria).