A instrução dos mortificados do e pelo costume. Várias histórias, que pareciam não fazer parte da mesma história, encontraram-se agora. Uma dessas histórias é a da inversão da preponderância da parcimónia e do conforto. Antes aquela tinha ascendência sobre este, do que resultava poupança, despesa frugal, precaução contra azares, imprevistos e o futuro que só a deus pertencia. Depois o conforto tornou-se preponderante e imperativo, surgindo a vida como manda a puta da sapatilha, com aquilo a que se tem direito, o cartão de crédito, o cartão continente, tem?, o cartão fnac, tem?, a hipoteca, o crédito facilitado, as prestações mensais, a euribor, o spread e o verde código verde. A casa, o carro, as férias, o lcd, o ipod, o telemóvel trêsguê, mais a sportêvê. Quando chega aquela fase do mês difícil, tanto as gajas quanto os gajos - há males que não reconhecem a diferença sexual - já não mandam atestar o depósito do automóvel, metem dez euros de combustível apenas. Há quem diga que este é o paradigma da vida acima das necessidades e das possibilidades - possibilidades, aqui, entendidas no sentido estrito de liquidez. A par do aumento do consumo, estimulado fartamente, porque o negócio é mesmo assim - a produção é para ser vendida -, os salários aumentaram, quando aumentaram, não muito e por ora raramente acima da inflação. O que significa que parcela não dispicienda do poder de compra é subvencionada por crédito bancário (ou outro). Antigamente, quando o mundo era mais certo, os créditos eram concedidos - «concessão de crédito» é uma expressão estúpida - por prazos breves. Por exemplo, caso limite, um crédito para aquisição de habitação estendia-se, no máximo, até aos vinte anos. Agora são contratados créditos para o mesmo efeito até os eventuais netos estarem em idade e condição de contribuírem para suportar a prestação mensal. Porque é necessário instigar ao consumo, porque as pessoas precisam de consumir, porque as empresas precisam de vender, porque os bancos existem, aumentou a contratação de crédito brancário. Portanto, já não basta confortar o espírito das gentes com orações e mistérios siderais. As gentes tornaram-se exigentes, actuais. O seu corpo habituou-se às modas novas, ao que se vê na teelvisão e nas revistas, ao que, porque não são nem mais nem menos do que os outros, lhes é devido. Para além disto, tais gentes passaram a crer e a querer que a sua salvação é e seja terrena, pelo que não estão disponíveis para delongas e aguardar o juízo derradeiro post mortem. Daí que, ao financiar crescentemente a satisfação de necessidades de ordens diversas - sobretudo os prazeres medíocres ou pequenos -, os bancos se tenham tornado paulatinamente organizações de concertação e mediação económica e social. Este era o panorama maravilhoso, o panis et circencis do fin de siècle e do new millenium, do qual todas as partes beneficiavam. As pessoas porque podiam adquirir e, assim, consolar-se com as suas aquisições e ver o episódio seguinte da teelnovela. Se não tinham dinheiro, se não aforravam, não fazia mal, os bancos emprestavam - «empréstimo» é eufemismo de crédito bancário. Os bancos, porque não emprestavam apenas, ganhavam com o serviço da dívida contratada. As empresas também beneficiavam porque, para além de não terem que aumentar os salários reais - na justa medida em que os bancos supriam parte as manias da pessoas -, aumentavam a facturação e escoavam os seus produtos, consumidos precisamente por quem cujos salários reais não eram aumentados, mas que tinha lá as suas manias. Por fim, beneficiava também o estado, sob a forma de tributos vários, desde o imposto sobre o valor acrescentado até ao imposto de selo, passando pelo irc, o imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas, e pelo isp, o imposto sobre os produtos petrolíferos, e ainda sob a forma de ilusão e mansidão social. Não obstante fingido, o tipo providente da administração pública também ajudava tais ilusão e mansidão. Até que, agora, consta, há crise. Parece que não há liquidez - o que, traduzindo, significa tanto sobreendividamento quanto sobreprodução e, claro está, estupidez geral. De tal modo que, parece também, o estado tem que dar o seu aval aos bancos subscritores de dívidas junto de credores outros. E parece ainda que, para não ser pior, a malta tem que preservar a serenidade e a fidúcia. A malta quer-se mansa, como as reses prometidas ao magarefe, porque, embora possa não parecer, o caso é de res publica. Acresce que, porque há amanhã e depois de amanhã, a bolha não pode parar. Ninguém está disponível para tornar aos tempos da sobriedade do pronto-pagamento ou para juntar dinheiro até que chegue para comprar o que é desejado e necessário. Se as crises passam, incluindo as crises agudas, a necessidade de consolo mantém-se, haja ou não haja liquidez ou poupança. Aliás, é para a satisfação da necessidade de consolo que serve o consumo e é para o consumo que serve a produção e o crédito. Isto está tudo ligado, é tudo a mesma história. Pelo que, como a alienação, a mortificação é comum. Mas o conforto também. É e será. Porque não é com aleluias ou améns que agora ou no futuro se alcança o consolo. Segismundo.