Livrete dos anjos sujos, xvii. Mónica Liberman tinha coração cascadeur. As asas permitiam-lhe isso, coreografias e manobras que desafiavam as gravidades, a da maçã de Newton e a da pauta honrada. Era louca na cama e sobre outras peças de mobiliário. Não por acaso a pedra de mármore da cómoda do seu quarto foi partida. Se não distinguia mobília, ela também não distinguia divisões ou exigia o recato de paredes para consumar o acto. Bastava-lhe a vontade, dispensava espórtula. Havendo talante, propiciava a oportunidade e concretizava a performance. Às vezes na rua, como uma cadela ciosa. Porém ela não beijava. Sou solta n’ars amatoria, comigo pode ser tudo, excepto beijos. Temia que, durante o ósculo, algum dos seus parceiros lhe sugasse o ar dos pulmões, asfixiando-a. Morreu ainda nova, antes dos trinta anos, na sequência de um salto com pára-quedas mal sucedido. O exercício fazia parte da terapia contra a fobia dos beijos. Por causa da fama acumulada e dos seus modos soltos, as autoridades locais impediram que a sua campa fosse adornada com uma lápide com o seu nome talhado a cinzel. Aqui, às putas e às tontas, mesmo às que têm asas com penas macias, este pormenor dela o administrador sabia-o por prova pessoal, aplicamos a regra da campa rasa, explicou ele. Desde então, naquele lugar, o vento desafia os ciprestes como nunca antes qualquer elemento desafiou. Há quem diga que as gravidades estão a começar a mudar, ali. Eliz B.