A propósito de pacotes de massa cotovelinho et cætera, iii. Continuação. A malta não dispensa o chão, o bom porto de todos os dias. Mas as canções de Boxer, o último álbum dos The National, permitem à malta imaginar-se numa jangada, assolada por mar crespo e cavado. Ui, o sofrimento atroz que é, a malta a sentir-se sobre os toros frágeis - metáfora da vida -, atados por cordas prestes a ceder - metáfora das condições das relações -, no infinito salgado - metáfora das lágrimas imensas por causa das metáforas anteriores -, sem margem à vista - o suicídio poderia ser considerado, mas talvez seja doloroso -, já a sentir-se náufraga, com os tubarões a rondar - metáfora perfeita da desgraça que se aproxima -, e as guitarras numa melodia insonsa e indolente, a fazerem coro. A puta da vida tal e qual ela é, devolvida em exercícios de sublimação, chamados canção. Que são o mesmo que a vida, mas em segunda mão. Por outras palavras, a vida filha da puta é o pêssego, com caroço, a polpa massada e casca; as canções dos The National são o pêssego em calda. Um, que bom, quiça se melhor que o pudim flan. Nada a fazer, os santinhos do desgosto podem muito. A malta fez o download pirata de Boxer, utilizando o rapidshare, mas depois foi à fnac comprar o cd ou encomendou-o à amazon.fr porque teve que ser - para levar nas férias -, e assim pagou em euros e não teve que suportar aquela taxa esdrúxula - que não significa proparoxítona - de câmbio para dollars americanos ou pounds britânicas, que os bancos têm a mania de meter no extracto do cartão de crédito e, claro, cobrar. Os cinco dos The National merecem. Mas em Boxer não são só eles. Note-se que Sufjan Stevens emprestou o seu pianinho a duas canções desse álbum, para as melodias serem ainda mais bonitinhas, aparadas nas pontas. Sufjan Stevens é outro que tal, das canções paneleiras. É dele um tema sobre um mau, John Wayne Gacy, Jr. (in Illinois, Asthmatic Kitty Records, 2005), o palhaço matador, que parece uma canção de embalar crianças. A despropósito, sabe-se quem a tenha ouvido em looping até ao enjoo, para escrever um texto ridículo, para uma rúbrica radiofónica ridícula, com um título também ridículo, «os monstros são nossos amigos». Foda-se, tudo a mesma gente. Os gajos da malta que ouve The National têm pêlo nas axilas, na carinha laroca - às vezes estende-se até à superfície que cobre o esternocleidomastoideu -, no peito, na púbis - a parcela baixa da região hipogástrica, para que conste -, no escroto, mas gostam de conhecer a liturgia do sofrimento. Aqueles amores turtuosos, o ciúme, a consequência da traição cabrona, aquela traiçãozinha esporádica, subtil, impulsiva, tipo teve que ser, querida, a gaja estava mesmo a pedir, mas quem eu amo és tu e só tu, mor, talvez até da traição sacramental, aquela que é repetida, que acompanha a brutalidade e o tédio dos amores, a do corno. Ó o fosso. Os brasileiros chamam-lhe fossa. É a ternura exposta do fim dos vinte e do começo dos trinta, uma geração inteira, travestida em canções, dizem. O caralho. E o concerto da aula magna da universidade de Lisboa?, ó ié, o melhor. Começou e arrastou-se com um som de merda, pior do que o dos grupos de baile que animam as romarias de qualquer charneca, mas isso não tem qualquer importância, foi para os gajos poderem depois atingir o plano divino dos fodidos. A humanidade falha, até nas canções. E na recepção das canções. Na véspera, na mesma sala, estivera Diamanda Galás, uma senhora que sabe gritar e que deixa tudo ainda mais fodido do que os The National, mas ninguém queria saber. Se havia ecos disso na cabeça de alguém no dia seguinte, passou despercebido. Ó os The National em palco, com Padma Newsome, melhor do que bebinca, do que pudim de queijo. E o Matt?, ó, o Matt, sim, o Matt. Está bem. Em doismiletrês apareceu um álbum de canções fodidas para amantes javardos e a malta andava por aí, a preparar-se para os Arcade Fire, ó, ú, os Arcade Fire. Dois anos depois, com um álbum com nome de espécie de crocodilo, a malta agitou-se um bocadinho. O caso até veio em revistas estrangeiras, que a malta lê. Mas foi com um álbum cujo título remete para raça de cão, aquele com mais canções paneleiras, que a malta exultou e passou a uivar dia e noite. Súbito os The National transformaram-se no manitou da malta. Tan tan tan tan tan tan tan tan tan, a malta bate o pé em torno do totem. Acima nada, abaixo todos, mortos incluídos, sem destrinça. Corações ao alto, mesmo os destroçados ou estilhaçados. E rebentaram aqueles versos tão lindos, tão poéticos, tão tudo, de uma canção com um título tão cavado de belo, «Slow show», que até parece um ferro em brasa a tatuar a quente o peito da malta. Versos, manifestou-se, estes, You know I dreamed about you
for twenty-nine years before I saw you
You know I dreamed about you
I missed you for
for twenty-nine years. Vinteenove anos, a idade da espera é a idade da foda grossa. Não há outra. Óquei. Adiante. Os The National são tão bons que não fazem plágio, pilham a letra de uma canção anterior (vide «29 years», in The National, Brassland Records, 2001). Seis anos depois, os mesmos versos. Em doismileum ainda eram compreensíveis, porque o Matt cantava I met a girl called disillusionment. Ó Matt, se fosses só tu, pá. Isso já aconteceu a qualquer gajo. As gajas têm um dom. Bem, as gajas têm mais do que um dom e é esse mais que interessa aos gajos, mas depois um gajo sofre tanto. Tanto e por amor. Tanto tanto que até há canções bonitinhas sobre o assunto, com palavras a condizer com a melodia e o ritmo. Uma pessegada, em calda, tipo xarope para supliciados. O amor fode-nos tão bem, não é? Enfim, por tudo isto ou por outro motivo qualquer, para atestar que o caso The National é mesmo assim, lá irão ele e a Ludovica - até tu?, ó Ludovica - confirmar esta e a sua miséria, a uns jardins bonitos de Guimarães, quando for verão. Foda-se. Segismundo.
said...
Foda-se, pá! Tudo andas todo fodidinho.