Quem não sabe é como quem não vê. Por mais que cocem a barriga, as senhoras deputadas e os senhores deputados do ps e do psd jamais serão capazes de demonstrar que a crise de governabilidade das autarquias locais, maxime os municípios, resulta do modo como são actualmente constituídos os seus órgãos. Não há evidência empírica disso. Do que há evidência, e sobeja, é do cesarismo municipal, materializado na figura e na acção do senhor presidente de câmara municipal. Quando as coisas correm bem, sim senhor, o homem é o maior, um homem bom, o líder carismático. Quando as coisas correm mal, claro, está o caldo entornado e ai que o gajo afinal não é o que parecia ser. Do que há evidência sobeja também é das condições institucionais que não favorecem os dispositivos de controlo e de monitorização política da acção do executivo municipal, mormente do senhor seu presidente. Focando o caso estritamente no plano orgânico, na generalidade dos municípios a assembleia municipal é um órgão colonizado ou tutelado pelo senhor presidente de câmara municipal. E as condições de exercício da generalidade dos vereadores ditos da oposição são confrangedoras - durante a maior parte do mandato pouco mais do que assistem à sessão semanal do executivo municipal, em que votam matérias sobre as quais têm nenhum ou pouco controlo. Assente isto, o que pode dizer-se sobre o projecto de lei n.º 431/X, patrocinado pelo consórcio que congrega ps e psd, é que assenta em pressupostos errados ou falsos. O grosso das alterações propostas vai no sentido de reforçar o presidencialismo municipal, não de qualificar as condições de governabilidade dos municípios - já agora, era conveniente que as luminárias do consórcio dissessem o que entendem por governabilidade; é de apostar dobrado contra singelo como, no fundo, no fundo, para as ditas criaturas governabilidade significa política de mando, porque concertação e deliberação e tal são palavras bonitas, rimam com democracia, mas, ai ai, que chatice, leva-as o vento que passa. Para além disto, o projecto de lei referido finge apenas reforçar as competências da assembleia municipal - neste pormenor, o projecto de lei n.º 438/X, apresentado pelo pcp, e o projecto de lei n.º 445/X, apresentado pelo be, são mais ousados - propondo, por exemplo, o aumento do número de membros da assembleia municipal, o primeiro, o aumento do número de sessões obrigatórias desse órgão, o segundo, e a concessão de condições materiais e humanas de trabalho aos grupos municipais, ambos -, no entanto têm consequências orçamentais que importa aquilatar previamente, no sentido em que surge provável não serem suportáveis sem o desvio de verbas a afectar ao investimento (em muito casos já exíguas). As condições necessárias para aprovar uma moção de censura ao executivo municipal são de tal modo excessivas - e, por conseguinte, esdrúxulas -, que só no caso de uma conjugação extraordinária de factores é que poderia ser aprovada. E, exigência superlativa, duplamente aprovada. Por fim, o projecto de lei n.º 431/X é canhestro na introdução de limites à capacidade de voto dos senhores presidentes de junta de freguesia na assembleia municipal, órgão em que têm assento por inerência. Os projectores do projecto referido propõem que os membros por inerência na assembleia municipal não possam votar os documentos previsionais e de prestação de contas do município. A ideia não é má.* Mas, é aqui que a estupidez grassa, os mesmos fulanos mantém a capacidade de voto em matérias que concretizam necessariamente as opções orçamentais e a gestão das receitas e das despesas do município, como a autorização de contracção de empréstimos bancários ou de alienação de património, a constituição de empresas municipais ou a participação no capital social de outras entidades, a fixação de taxas e mais não sei quê. Em suma, inventar problemas é bonito. É uma arte, pode afirmar-se, mesmo. Mas, ao menos, que quem inventa problemas revele capacidade de os resolver. E não deixe o rabo de cartel de fora. A abanar tipo cachorro contentinho. Porque, com o loteamento em curso, já lhe cheira a mais despojos públicos. Nicky Florentino.
* Bom, mesmo, conceda-se o falocratismo, é que os senhores em deputação tivessem o escroto recheado e fossem capazes de sanear os senhores presidentes de junta de freguesia da assembleia municipal, remetendo-os para um órgão consultivo qualquer, tipo conselho municipal ou o caraças. As criaturas na assembleia municipal produzem uma dupla distorção, de quantidade e de qualidade. Em termos de quantidade, na generalidade dos municípios os senhores presidentes de junta de freguesia reforçam a hegemonia da força política mais votada na assembleia municipal, alterando o peso e a proporção dos diferentes grupos políticos constituídos directamente por via eleitoral, com prejuízo evidente para as forças políticas minoritárias, que tendem a conseguir eleger menos desses senhores. (Isto, claro, sem invocar o facto de o voto de um senhor presidente de junta de freguesia na assembleia municipal ser igual ao de qualquer outro, independentemente do número de fregueses que representa ou que o tenham constituído eleitoralmente). Em termos de qualidade, os senhores presidentes de junta de freguesia tendem a comportar-se na assembleia municipal como regedores da paróquia e não como deputados municipais, o que faz com que em muitas circunstâncias, quando ajuízam que os interesses da respectiva freguesia são lesados, afirmem e tenham posições desalinhadas em relação ao grupo da força política pela qual foram eleitos.