Martelo, bigorna e estribo, o resto é cartilagem. De quando em quando acontece o anúncio do apocalipse pátrio pelo senhor presidente da república. Agora aventou que as senhoras e os senhores das honras “têm que estar preparados para ouvir a voz do povo”. Desde já, dispense-se considerar o dever de preparação dos tímpanos de suas senhorias, foque-se a atenção no outro elemento. Que é isso «a voz do povo»? É o efeito da assombração que resulta da ficção do colégio dos gentios como coro uníssono. Ora, como na prática «a voz do povo» são muitas vozes, para ouvir a voz desse espectro chamado povo, as senhoras e os senhores têm que ter ouvidos sensíveis à polifonia gentia, não fazer uma figura de tonto, semelhante à de Hamlet. Mas isso é uma chatice, é mais fácil o drama. Por isso inventaram «a voz do povo». E, mais engenhoso ainda, editam-a consoante a respectiva conveniência. E, assim, embora o povo não fale, as senhoras e os senhores ouvem a voz do povo, que é a sua voz. Enfim, é tudo já muito para além da insânia de Hamlet. Primeiro é a paranóia, depois é metanóia adequada a tal paranóia. Chamam-lhe democracia. Podiam chamar-lhe ouvidoria que ninguém sentir-se-ia escandalizado. Nicky Florentino.