Sopa com requiem. Acordou sem acordar - como é que se explica isto?, não se explica: levantou-se, ponto final. Levantou-se perturbada, a julgar que o requiem era uma espécie de pó para acrescentar à sopa, para a tornar mais espessa. Havia gengibre e uma faca sobre a bancada da cozinha. Havia outros ingredientes também, porém não interessa a sua discriminação, por ser fastidiosa. A faca sobressaía, lâmina larga e romba, sem brilho. Já tinha ido à amazónia e voltado e lá, quando a fome apertou, serviu para amanhar sapos e macacos, que foi o que se conseguiu arranjar para a dieta. Mas agora a faca estava ali, posta como morta. não, o requiem não é bem uma espécie de pó, é mais uma espécie de caldo knorr, para temperar a sopa. Eles famintos e eu angustiada, sussurrou para si. Contornou a bancada, olhou outra vez para os ingredientes, mais próxima. Batatas, cenoura, cebola, azeite, sal, gengibre... Calou-se e assentou as mãos sobre o bordo da bancada, com os polegares encontrados, e deixou a cabeçar pender, como se estivesse extenuada. Não estava. Não me apetece fazer sopa, não vou fazer sopa, determinou. Pegou a faca, sentiu o rebite mal cravado do seu cabo, e afundou-a no peito. Não gritou, não gemeu, nada. Retirou a faca, pousou-a sobre a tábua, colocada no limite da bancada, imediatamente ao lado do fogão. Um golfo de sangue saiu de si, precipitando-se sobre o fogão, atingindo também a panela sobre ele. Depois outro golfo, mais outro e mais outro ainda, ao ritmo da sua respiração. Baixou-se e estendeu-se no chão. Sob ela havia já uma mancha grená líquida alastrada. o requiem... Hoje... o requiem... não vou fazer sopa... o requiem... com gengibre, disse. As últimas sílabas foram pronunciadas com demora e cortadas, como se ela segredasse à morte a sua decisão. O Marquês.