o admirável mundo das ferramentas. Sem aviso, ela foi visitá-lo ao local de trabalho. Queria trocar mimos, atenção, namorar, gostas de bacalhau com natas?, saber o que ele queria jantar. No entanto ele não conseguiu corresponder à expectativa que ela tinha penhorado ao decidir ir ali. Demasiado ensimesmado e tímido, surpreendido pela presença dela, o mais que conseguiu fazer foi convidá-la a passear pela loja, oferecendo-se como cicerone. Com isto, esquivando-se às manobras de afecto, beijos, abraços, afagos, carícias, toques, olhares, ele entreteve-se a apresentar-lhe a panóplia de ferramentas existente no estabelecimento. Isto é um apalpa-folgas, disse, apontando uma bolsa pequena do mostruário. Ela soltou um risinho de escárnio. Tal facto não o inibiu. Pelo contrário, tonificou-lhe a vontade de a impressionar. Por isso, seguro e com um entusiasmo raro, prosseguiu a visita guiada, isto é um roquete para chaves de caixa com encavador de meia polegada, isto é um jogo de chaves para parafusos com cabeça com sextavado interior, ora pegando as ferramentas cujo nome enunciava, ora apontando-as nos expositores. Isto é uma chave inglesa, isto é um alicate de pressão, este aqui é um alicate para freios, para abrir, este outro também aqui, sem mola, é igualmente um alicate para freios, mas para fechar, isto é um alicate de corte, isto, isto, isto, isto... Ele continuou o apontamento entediante, grato para ele apenas, enquanto ela desviou a sua curiosidade para o expositor das ferramentas de impacto e percussão. Havia aí martelos, maços e malhos de tipos e tamanhos vários. À frente deste expositor, no chão, havia três bigornas, com dimensões distintas, alinhadas em crescendo, da esquerda para a direita. Indiferente ao desvio dela, concentrado na missão a que se entregara, isto, isto, isto aqui, este, isto, este, aquilo, isto, isto, olha, isto, isto..., ele prolongou a arenga, como se fosse um botânico a apontar toda e qualquer planta, ao mesmo tempo que pronuncia o respectivo nome científico. Pouco depois soou a sirene de uma ambulância. Parou junto ao estabelecimento e os bombeiros recolheram um corpo, que deitaram na maca. A rua ficou sob um aparato incomum, muita gente, consternação, agentes da polícia. Ele, rapaz tão novo, estava morto. O relatório da autópsia definiu como causa da morte a contusão cerebral resultante do politraumatismo craniano produzido pelo uso repetidas vezes de um objecto contundente. O Marquês.