A biografia. O contrato cessaria após as exéquias do biografado. Pelo que, enquanto ele vivesse, ela, a biógrafa, deveria acompanhá-lo em todas as circunstâncias, as públicas, as privadas e as íntimas, sem que, em qualquer momento, qualquer que fosse, ela pudesse ter intervenção sobre os acontecimentos que testemunhasse. Grosso modo, era-lhe exigida atenção, apenas e só. Deveria estar tão próxima quanto obrigasse a verificação dos actos, das palavras e dos diálogos do biografado. Porém também deveria estar tão distante quanto obrigasse a reserva de tais actos, palavras ou diálogos. O que significa que, quanto ao mais, ela deveria guardar-se silenciosa e invísivel, para evitar qualquer interferência na vida do biografado. No início, embora inusitada, a missão pareceu-lhe interessante. Tanto que dedicou-se afincadamente, estenografando tudo o que, pelos olhos e ouvidos, testemunhou, episódios edificantes ou decandentes. Uma noite, imaginou-se deus. Parecia uma carcaça imponente, asada, mas incapaz de alar-se. Como deus, não obstante omnívoro, revelou-se cioso da sua dieta de carne. A sua imponência crescia-lhe e saia-lhe daí, não do espírito. Naquela circunstância, imaginou-se deus com uma dignidade medieval, nobiliárquica, num banquete permanente, afundado entre as vianda que iam colocando sobre a mesa. Ao seu lado e alcance, um cálice sempre cheio, do qual ia bebendo o melhor néctar e com o qual também embriagou as visitas, três jovens belas, com carnes soberbas e firmes, capazes de, pela exposição apenas, amotinarem o corpo de qualquer macho que as visse, mais ainda as três, se juntas. Chegou inclusivamente a vigiar o sono do biografado ao longo de vários anos, para poder reportar o modo como ele dormia. Não obstante a sua dedicação quanto a este parâmetro, o produto da observação resumiu-se a um parágrafo, sem fulgor, cavado num discurso incapaz de expressar devidamente o estado de repouso do contratante. Por isto, por demorar a vida do biografado e por ela pretender livrar-se do contrato, numa tarde soalheira, quando ele passeava pelo parque com uma das suas amantes, decidiu matá-lo. Cismou durante algum tempo sobre o modo como concretizar tal decisão. Porém quase nada se sabe sobre o que aconteceu. Uma mulher incerta, suspeita-se que da sua confiança, cravou-lhe cavilhas, uma em cada uma das suas mãos. Depois açoitou-o. Retalhou-lhe a carne em pequenos golpes, gerando refegos que, em algumas partes, permitiram denunciar músculo ou osso. Drenou-lhe o sangue. Temperou-lhe a carne enxuta com calda de enxofre, para a vivificar. Regou-lhe as chagas e os olhos com vinagre. E, em estado de consciência permanente e sofredor, ele padeceu o suplício durante mais de quarenta e oito horas, termo após o qual expirou, como um cão não reclamado pelo dono. Apesar da aturada investigação realizada pelas autoridades competentes, nunca se soube quem o martirizou e porquê. O Marquês.