Ouroboros. Embora dito em discursos mais ou menos assanhados ou protocolares, o «poder local» não existe. Não existe «poder» porque é escassamente potente ou impotente. E não existe «local» porque é sequestrado e apropriado por uma teia estreita, que reúne os comissários políticos eleitos e os capatazes de terreno associados, figuras cruciais na galopinagem e na garantia dos processos de patrocinato e do populismo de campanário que configuram e sustentam uma parte significativa da política local. Neste sentido, perante a plausível e provável insignificância das autarquias locais, não se entende o escarcéu que com frequência envolve esses entes administrativos, muito em particular os municípios. Que raio é que justifica a tamanha relevância das seitas autárquicas no concerto político pátrio? Sim, que raio? Sobretudo a distribuição dos despojos públicos e o modo como ela se processa. Vale tudo. Bem, tudo talvez não valha, mas vale quase tudo. Desde a providência cautelar até à manigância ou à barganha feita com a maior desfaçatez, todo o acto de um senhor autarca é susceptível de conquistar densidade política. Como as manias dos gentios e as contingências telúricas não se compadecem com um ordenamento político de escala superior, há que fazer pela vida, que bastas vezes é a vidinha. Compreende-se que assim seja. No chão, o interesse público é o interesse do público. E o público é aquele, o dito povo, a paróquia, as gentes da terra, com as suas precisões e as suas urgências. Para além disto, tanto o Governo quanto as oposições, consoante as conveniências - que é o mesmo que dizer o tempo ou o espaço -, tendem a nutrir o lodo dos fossos municipais. Pelo que, como não há meio de vir o próximo dilúvio, é com esta fauna e esta paisagem que temos que viver. Ainda bem. Porque, diz-se, aprende-se com os erros. Aliás, a primeira base assimilada e invocada por qualquer senhor autarca ou governante é esta: errar é humano. E, assim, de modo tão simples, está dada a volta ao problema. São todos inocentes. E uma cambada de queridos. O problema só torna a ser problema quando, a partir de determinado limiar, queridos passa a ser particípio passado e deixa de ser adjectivo. Raramente a demora relativa a tal transmutação é longa. O colégio de gentios que elege os eleitos conhece-se e, portanto, conhece-os. Sabe quem eles são e do eles que são capazes. Circunstancialmente prefere iludir-se. De outro modo seria incapaz de tolerar a sua própria insustentabilidade. Ninguém está para padecer esse tipo de perturbações na sua psique e na sua carne. Uma vez mais, ainda bem. Em política, sob alienação a autofagia é menos dolorosa. Quase como não acontecesse. Mas mais tarde ou mais cedo, os gentios sobressaltam-se e fingem-se cidadãos. São capazes, inclusive, de genuína indignação. Ainda assim, não de tanta que cheguem a indignar-se consigo, por, no limite, estarem a morder-se a si-mesmos, como bestas que mordem a própria cauda. Nicky Florentino.