Cenas da cidade pequena. O homem vende sapatos, numa loja situada na esquina de uma praça. Provavelmente vende sapatos desde os seus tempos de mocidade, ali, naquela loja, naquela esquina. A clientela, percebe-se pelos artigos expostos na montra, é modesta e rara naquele estabelecimento. Mas todos os dias, de manhã até ao crepúsculo, o homem, aquele homem, abre a loja e espera que entre um cliente. Hoje o homem rompeu a rotina dessa espera. Ao fim da tarde dirigiu-se ao café Central. Entrou. Aproximou-se do balcão. Pediu uma cerveja. E foi bebê-la, pela garrafa, para a porta do café, o lugar de onde podia espiar os clientes que não aparecem na sua loja. Indiferente, ele fingiu a atenção. Fingiu a eminência de alguém interessado em adquirir calçado, a entrar na sua loja. Ninguém se aproximou. É plausível que hoje ninguém tenha entrado naquela loja. E é plausível também que o homem, aquele homem, ao fingir, tentasse enganar a solidão. Mas a solidão, tão entranhada em si, não se engana. Ela habita-lhe já comodamente o corpo. Ele finge os seus clientes, mas não se liberta do espectro que o (pre)enche. É por isso que dobra os olhos sobre o chão e não diz boa tarde. Nem ao entrar nem ao sair do café Central. Segismundo.