Perdição. Ele acordou e nesse instante já se sentiu perdido. Tinha o corpo tatuado a frio por destroços e nenhuma memória. Quem sou?, foi o que perguntou. Pode parecer estranho, mas a primeira coordenada que alguém procura quando se sente perdido é a respectiva identidade. Quem sou?, continuou ele a interrogar-se sem encontrar resposta. Ainda sob esta interrogação, levantou-se e estendeu os braços. Procurou no corpo sinais de si. Percebeu as cicatrizes. Porém, ainda antes de, por elas, conseguir saber quem era, surgiu-lhe outra interrogação, onde estou? Enunciada esta pergunta, com os olhos perscrutou o cerco. Depois avançou em direcção às paredes. Tacteou-as. Tacteou a porta também. Abriu-a. Saiu daquele compartimento e foi em busca de si. Ao sétimo passo deparou-se com outro. Perguntou-lhe, quem sou? O outro nada respondeu. Acometido de um impulso, de uma veneta, ele agrediu-o. Avançada a agressão, estrangulou-o e apreciou a sensação que esse gesto lhe proporcionava. Continuou a pressionar os polegares sobre a traqueia do outros mas, por estar ele já cadáver, deixou ele de sentir o agrado que sentira antes. Entretanto, na sua cabeça, alternadamente, continuavam a ressoar duas interrogações, quem sou?, onde estou? Por isso, esgotado o prazer daquele instante, avançou pelo corredor branco. Olhou o próximo outro, aproximou-se dele e, antes de lhe perguntar, quem sou?, precipitou-se sobre o seu pescoço. Enquanto o outro foi resistindo ao estrangulamento, ele tornou a experimentar gozo. Mas a asfixia acabou por vencer. O outro deixou de oferecer resistência. Estou perdido, mas começo a conhecer-me, raciocinou ele. Gosto de sentir a dor e o tormento dos outros, murmurou para si, como se estivesse espantado com tal revelação. E continuou a andar pelo corredor, perseguindo a próxima sombra. Algo, de dentro – afinal, algo havia em si –, lhe sugeria que aquele era o caminho do seu encontro. E assim foi. Preparando já as mãos. O Marquês.