Estava o povo em seu sossegado sossego quando. Na pátria, nos últimos idos, tornou a falar-se em referendos. É mau prenúncio. É um facto que a democracia não existe. Mas, ainda assim, vai existindo qualquer coisa que se aproxima desse ideal, desse horizonte. Uma das coisas que existe é o conforto da representação política. Por via de uma ficção como qualquer outra, os representados, em figura de povo – isto é, colégio de gentios em juízo e ordem –, constituem os representantes. E estes, para o bem e para o mal, enquanto dure o mandato, estão mandatados para decidir em nome dos gentios. Isto é um sossego. Alivia o povo. O povo vota e, depois, os senhores decidem. É assim que, por economia funcional e conveniência psicológica, as coisas devem ser. Por isso, convocar os gentios para se pronunciarem seja sobre a interrupção voluntária da gravidez seja sobre a dita constituição da União Europeia é uma manobra que atenta contra a paz e a tranquilidade do povo. Os gentios não são estúpidos. Quando votam, vislumbram de modo preclaro todas as minudências da política e das respectivas contingências. Péricles, numa célebre oração fúnebre, disse mais ou menos isso. Aliás, falar sobre o aborto não é assim tão diferente quanto falar sobre uma telenovela ou um jogo de futebol. Os gentios dominam com sobeja sabedoria todos esses mistérios. E se se afirmam desconhecedores dos mistérios da Europa é porque isso, salvo os fundos comunitários, não lhes interessa puto. Por isso, deixem os gentios em descanso! Os senhores que decidam! Foi para isso que lhes foi emprestada honra e remuneração condizente. Nicky Florentino.