Calar deus. Quase quatro da madrugada. O senhor António estava sentado no rebate da porta da casa dele. Nunca antes tinha acontecido. Disse-lhe que tinha fome. Frio não. Que deus, uma voz que tem lá dentro de si, havia-lhe dito que fosse ali e esperasse. Alguém, muito provavelmente o filho do senhor Francisco, lhe haveria de dar de comer. E de beber também. Assim foi. Sopa de agrião. Ovos mexidos, acompanhados por batatas fritas às rodelas e queijo e chouriço e pão. Pudim. Maçã. Avelãs. E água. Ao princípio o senhor António insistiu em comer de pé. Foi assim que comeu a sopa e o primeiro pão. Deus, a tal voz de dentro, ordenara-lhe que, se lhe oferecessem de comer, não se sentasse em qualquer cadeira. Era um sinal do respeito devido. Mas como deus nem estava ali nem era para ali chamado, ele reiterou o convite ao senhor António para que se sentasse. Embora num banco. Por ser deus perfeito, se o proibira de sentar-se em cadeiras, era apenas em cadeiras que ele não podia sentar-se, argumentou ele. O senhor António hesitou. E rogou a deus que lhe explicasse se assim era. A voz de dentro, porém, não lhe respondeu. Por instantes, o senhor António viu-se sozinho, sem a companhia interior. Por isso decidiu pensar. Pensou e, perante o silêncio da tal voz, julgou justo o argumento que ele lhe apresentara. O senhor deus pode tudo, não é verdade?, e a mim disse-me apenas para, por respeito, não aceitar sentar-me na cadeira que me oferecessem. Ora uma cadeira é uma cadeira, um banco é um banco, expôs, em voz, o senhor António. Dito isto, agarrou o banco. Concertou-o. Sentou-se. Depois, o resto, comeu sentado. Segismundo.