Contra a solidariedade parental. A família é uma das instituições sociais mais inconvenientes. No passado domingo, imbuída do espírito da estação, provavelemente convicta que o cordeiro pascal servira para redimir antecipadamente todas as faltas, a mãe dele apossou-se da chave do seu carro, deixando uma nota lacónica, em que o aconselhava a levar outro carro para o seu destino, o mesmo que o dos seus pais. Tomada de urgência, ela, a mãe, não se lembrou de lhe deixar a chave de outro carro, qualquer que fosse. Também não interessava. O paizinho, cioso guardião da frota automóvel, temendo desvios, tratara de levar todas as chaves enfiadas nos bolsos. O costume. Até aqui tudo bem. É previdente não haver atrasos relativamente a almoços onde antecipadamente se sabe que irão estar as cinco pequenas bestas devoradoras. Mas jamais tudo é tão simples quanto devia ser. Ontem, ao entrar no seu carro, recuperado, ele teve dificuldade em acomodar-se. O senhor seu pai, quando utilizou o veículo como se fosse o seu indisputado proprietário, pretendendo ajustá-lo à sua condição, inclinou o banco para diante, afundou-o, chegou-o para a frente, quase o máximo, e, como se não bastasse, ainda levantou o volante. Foram necessários alguns minutos, bordados continuamente a imprecações e outros dispositivos de catarse, antes que tudo voltasse à afinação que é normal para o único e legítimo proprietário do veículo. Ao lado, à mãezinha, que não percebera o que se passara, o filho, já não o filhinho, apenas lhe pareceu louco. De nada adiantou a tentativa de elucidação da senhora relativamente ao motivo do processo, a busca da normalidade, e das palavras. Pois, entretanto, quando começava a inclinar-se a fornecer tal explicação, ele apercebeu-se que o cêdê que devia soar lá dentro, na cápsula do seu automóvel, havia desaparecido. Segismundo.