Natividade. A anunciação segundo M., o segundo escrivão dos factos. Havia José, filho de Jacob, exímio manipulador de pau e madeira, caído em amores por Maria. Falaram-se e, por lhes arder um incêndio que não é de ver, prometeram-se aos esponsais. Antes de o matrimónio acontecer, continuou José nas suas artes de amanho do pau, a tratar do que um carpinteiro trata. E também Maria continuou nos seus rengorrengos da vida, a ser cachopa. Um dia, porém, por mistérios que não são da natureza, achou-se ela prenha. Conta-se que a nenhum homem consentiu ela o desfrute de si, pois que, pia e casta, se guardava para na ocasião das núpcias ser estreada por José. Mas, mesmo assim, sem trucatruca, maneira pela qual até os bichos do mato se estendem feitos outros para o futuro, certo é que se pôs a germinar no útero de Maria uma flor que haveria fazer-se fruto gente. A nova incomodou, como é de incomodar homem que se preze de homem ser, José. Mas, bom que era, embora se imaginasse traído e apenas isso, cuidou ele, por amor e justiça de jeito, nada publicitar e afastar-se sem estrépito, poupando, assim, Maria, que não era diamante, à lapidação. Combalido, ao juízo de José assomaram mil e mais congeminações e ideias, sem que ele conseguisse alcançar como podia estar de esperanças Maria. Como era possível inchar-lhe no ventre uma vida nova?, se ninguém lhe injectou com frémito o seu branco sangue, o seminal sangue com que se fazem os herdeiros. Nada dizem as crónicas se, nesta sequência de factos e desatino, José vacilou, encharcando-se em vinho ou mastigando ervas que alucinam. Contado é que um fantasma lhe apareceu, embrulhado estava ele em sonhos, e lhe confidenciou que aquela a quem o afecto o obrigava, mas a quem ainda não experimentara a carne e o molho, carregava já no ventre fruto de alheio, sim, mas não de alheio qualquer. O outro, o autor do serviço, era maior do que todas as gentes e coisas e todos os tempos, pai de tudo, e, por isso, sem convocar o acto da vergonha, apenas pela ideia, ideia santa, tão feita de nada quanto o vento, logrou ele semear varonil vida dentro de Maria. E mais disse o fantasma a José, que devia ele sentir-se honrado com o feito e acolher Maria, cachopa ainda por inaugurar, pois aquele que por ela seria parido viria agraciado com a faculdade de redimir os pecados de quantas gentes no mundo houvesse. Aurora mal feita, ainda estremunhado, ergueu-se José do leito e, fazendo fé na memória do sonho, procurou Maria, para que viesse ela para o lar, consentindo ele, com tal gesto e a estipêndio da própria honra, que o que brotasse dela, embora inocente ele fosse no caso, seu filho seria sem ser. O Marquês.