Ninguém, nenhum homem, nenhuma mulher, a desejava, lhe ambicionava ou gabava o corpo. Imaginou, então, nos cuidados do seu pouco ocupado juízo de donzela sem ofício grave ou certo, a melhor forma de ultrapassar a vergonha e (con)vencer a atenção dos outros, em particular dos homens que a desdenhavam. Para tanto, primeiro fez constar, pelos jeitos e caminhos da intriga, que recusara abordagens afoitas de dois moços bem vistos na vila. Depois, não muito depois, fez constar também que obstou às pretensões de um rico rapaz domiciliado numa cidade próxima, varonil de bom brasão, cuja família lhe propusera, em inversão das regras e da lógica das coisas, um afortunado dote. Apesar da congeminada manobra, ninguém, nenhum homem, nenhuma mulher, mudou de vontades ou apreços em relação ao seu corpo. Em derradeira aposta para melhorar a respectiva cotação no mercado das paixões ou das vaidades, fez ela, então, constar que, durante a confissão, sem o seu consentimento, os dedos do padre lhe devassaram o segredo guardado pela saia, acto com que o maldito prior lhe alagou irremediavelmente e para o resto de sempre as intimidades a que o destino ainda não tinha proporcionado estreia. Generalizado o boato, após as vésperas da última terça-feira, para gáudio do rebanho que no domingo anterior, depois da missa, tinha sido devolvido ao mundo em paz e na companhia do senhor, o padre foi lapidado até à morte, com as pedras destinadas a calcetar o adro da igreja. Só o sangue permite vingar a dor da honra perdida sem vontade, foi a regra aplicada ao caso. Ela, porém, ainda preservada e intacta, tal como na origem, para que a inaugurassem - facto desconhecido pelos crédulos vizinhos -, gozou uma dor que nunca antes lhe tinha sido permitida. Experimentou o extâse por perceber a dor a inscrever-se noutro corpo, num homem, num dos que nunca lhe ambicionaram a carne. Naquele dia, descobriu ela, pois, uma outra forma de felicidade. E ficou-lhe entranhada a necessidade de repetir semelhante prazer. O Marquês.