Os edis, como qualquer outra criatura bípede, com espaldar recto e polegar oponível, são falíveis. Sabendo disso, os não menos falíveis governantes e superiores burocratas da pátria têm perpetuado o enleio tutelar que, pelas mais diversas vias e nos mais distintos planos, controla ou estorva a acção dos senhores autarcas. Ora, sabendo-se que o jacobinismo português tem o seu quê tanto de avisado quanto de presunçoso, revela-se estranho que a Assembleia da República tenha concedido que sejam os senhores presidentes de Câmara Municipal, sem qualquer baia, a escrever as fronteiras do que serão as futuras áreas metropolitanas ou comunidades intermunicipais.
Tem sido travado um debate cordato sobre este tópico entre o Luís e o Vital, no Causa Nossa. Para já, o juízo do Luís sobre a matéria parece mais assisado do que o do Vital. Por várias razões. Elencam-se aqui algumas, sete, tantas quanto os pecados mortais.
Primeiro, o cesarismo municipal, enquanto cultura e prática, tenderá a impedir que as futuras áreas metropolitanas ou comunidades intermunicipais consigam ir muito para além do paroquialismo dominante. É mesmo de suspeitar que, na prática, venham a ser o mesmo que foram historicamente os partidos de notáveis, uma coligação circunstancial e específica de interesses entre senhores da terra. Pois não é de crer que, com a forma e a inércia do sistema político nacional, os senhores presidentes de Câmara Municipal venham a abdicar de jogar o seu capital pessoal nos mais diversos expedientes que animam com vista a conseguir uma resposta às suas demandas junto dos governantes e dos burocratas que com eles despacham directamente.
Segundo, se é um facto que não há uma pulsão regionalista em Portugal, certo é que também não há puto de evidência de uma pulsão intermunicipalista. A maior parte dos consórcios municipais actualmente existentes ou foi constituída por via de pressão do Estado ou com o estrito fito de captar fundos da União Europeia. Por mais boa vontade que exista em querer reconhecer o sucesso de alguns casos, é conveniente ter presente que quase todos eles têm subsistido não por via da comparticipação financeira dos respectivos municípios, mas sobretudo por via da captação de financiamentos estranhos, sejam eles estatais ou europeus. Apriori, não há, pois, qualquer garantia de que a via agora ensaiada venha a revelar-se sustentável, tanto no curto quanto no médio prazo.
Terceiro, não há uma convergência de entendimento político entre os autarcas e o sôfrego e bisonho secretário de Estado da Administração Local – que nesta matéria parece ordenar mais do que o respectivo ministro ou o primeiro-ministro – em relação à utilidade das áreas metropolitanas ou comunidades intermunicipais. Enquanto este as concebe como um espaço de concertação municipal que irá assumir a generalidade das missões entretanto transferidas para os municípios – e que, por economia, dificilmente podem ser eficientemente prosseguidas por cada município por si –, os autarcas olham para tais formas associativas como mais uma plataforma de reivindicação junto das fontes patrimoniais, designadamente o Estado – ou melhor dito, o governo. Por outras palavras, enquanto um se pretende aliviar de encargos, o que os outros querem é dinheiro para suportar investimentos que, por si mesmos, não estão em condições ou não têm vontade de suportar.
Quarto, se há engenho que os autarcas não dominam é a arte de cartografar. Por si só, isto é quanto bastava para que tivesse havido o discernimento de não conceder que fossem os edis, pelas suas simpatias e afinidades – e sem qualquer outra condição –, a definir o desenho das unidades territoriais a constituir. É um facto que o traçado dos distritos, assim como o traçado das NUT II e das NUT III, não é inquestionável. São sobejamente conhecidos casos de municípios que estão integrados numa destas circunscrições, mas cujas relações de interdependência plasmadas no território os tendem a aproximar de municípios de outras circunscrições. Ainda assim, não ter-se estabelecido alguns limites à associação de municípios vai permitir a definição de mais um mapa que não se compagina com os mapas já existentes. O que é mais um contributo para baralhar e não para concertar o raio do ordenamento administrativo português.
Quinto, no plano das atribuições, as áreas metropolitanas ou comunidades intermunicipais não são significativamente diferentes das associações de municípios existentes antes. Por aqui, portanto, a figura delas pouco acrescenta ao panorama do associativismo municipal. Onde se percebe qual é a intenção inscrita no novo regime de formas de associação municipal é ao nível das competências que são reconhecidas aos respectivos órgãos. E, daí, o que se depreende é que a bota não bate com a perdigota.
Sexto, a proposta de criação de regiões administrativas foi submetida a referendo em mil novecentos e noventa e oito. O resultado foi o que se sabe. Por um princípio de integridade e coerência política, a constituição das novas áreas metropolitanas ou comunidades intermunicipais devia ser precedida da realização de referendos de âmbito local nos vários municípios que entenderem associar-se entre si.
Sétimo, nada se sabe, de facto, sobre o que valerá o mapa definido pelo conjunto das novas áreas metropolitanas e comunidades intermunicipais em termos de organização territorial da administração desconcentrada e em termos políticos. A criatura que está em secretário de Estado da Administração Local sobre esse assunto já disse alfa, primeiro, e ómega, depois, sempre com a mesma convicção. Ora, isto não augura futuro. Se o voluntarismo com tino é pragmatismo, o voluntarismo sem trambelho é irresponsabilidade. E quase sempre a irresponsabilidade arrasta as melhores das intenções para consequências escatológicas. Ou seja, dá merda. É isso que, por ora, parece o mais provável. Mas há sempre a hipótese do engano. Que, neste caso, é também uma esperança. Mas esperança que, pelo que se vê, não se justifica ter. Nicky Florentino.