Vinte e duas horas, aproximadamente. Ele abordou a avenida das Forças Armadas vindo do Instituto que existe nas cercanias e tem uma denominação ridícula. Estavam vários carros indevidamente parados na faixa da direita, com os quatro piscas ligados. No instante, não foi a infracção ao Código da Estrada que lhe suscitou a atenção. Foi, antes, o número de carros estancados no asfalto e a hipótese de algum transeunte ter sido colhido por um veículo que por ali passasse. Mas não. Aquele aparato era apenas resultado do facto de o amor ou a simpatia de algumas criaturas as ter obrigado à expectativa. Os condutores, elas ou eles, sós, esperavam alguém. Notava-se. Visto isto, ele pôs-se a reflexões. O Estado de direito é uma ilusão. O amor e a simpatia são energias suficientes para vergar o direito, o direito escrito, à ineficácia. No fundo, no fundo, sentiu ele, nunca nos erguemos acima da anarquia. Apenas a disfarçamos e camuflamos com solenidades e outras aberrantes disposições. Plauto sabia bem o que dizia, somos todos umas bestas. E, apesar de todas essas fantasias que enunciam o contrato social e a constituição de uma besta maior do que qualquer um de nós – o Estado – que nos conseguiria amansar, nunca deixámos de o ser, bestas. As paixões e os interesses são domínios insubmissos. Negar esta elementar evidência foi um dos erros de Hobbes. E é por isso que, na avenida das Forças Armadas, as criaturas em manifesta infracção, impávidas, serenas, incólumes, esperavam quem esperavam. A lei, ali, naquele instante, não chegou. Ou melhor, ali, naquele instante, a lei foi outra. A do amor e da simpatia. O que não é lei qualquer. O Marquês.