Olho, sem confronto, a criatura que me acusa do outro lado do guichet. Ela fala alto, faz-se ouvir em todo o serviço. O libelo é público, portanto. As pessoas, utentes, dispersas pelo balcão ou ordenadas nas filas de espera olham-me, acusam-me também ou, então, desprezam-me por voluntariamente admitir estar a ser supliciado ali, perante todos. Devia ter vergonha, sentir-me conpungido. Contrariamente ao esperado, a fleuma cresce-me, preenchendo-me de uma estranha tranquilidade. A criatura continua a sua diatribe, eu sou o escopo. Continua a falar num tom de repreensão. Acusa-me e, sem demora, julga-me. Pareço estupidamente impávido. Os outros começam a sentir-se também eles incomodados. A cena é violenta. Não há palavra, qualquer delas dura, que não assente sobre mim e os outros são espectadores da minha entrega, sem esboço de defesa. Até que a dita criatura exclama você devia ter vergonha! Interrompo-lhe, então, o solilóquio de indicador em riste e demando, excessivamente calmo, o livro amarelo, se faz favor. A criatura empalidece de súbito e pouco mais reage do que balbuciar o quê? O livro amarelo, se faz favor, insisto. Faz-se um silêncio estranho na repartição. A criatura, ungida pela condição de representante funcional do Estado, protegida pelo balcão, acorre a uma outra criatura, presumo seu superior hierárquico, e diz-lhe algo. Esta outra criatura, composta, chega perto de mim e educadamente pergunta o senhor importa-se de chegar ali?, ao meu gabinete, endoçando o pedido com um gesto de mão. Respondo que importo, invoco como motivo desse importar a minha prolongada demora ali. É para tratar de forma civilizada o seu assunto, explica, em tom pedagógico, a tal outra criatura, de pose mais poderosa. Desculpe, mas, neste momento, eu desejo apenas o livro amarelo, se faz favor. Era o meu castigo. E dele não abdiquei. Nem vacilei quando a criatura que, sem piedade, me havia linchado defronte de todos aqueles anónimos para mim rogava, já lacrimosa, desculpa e, por amor a deus, consequente perdão. Acontece que não sou temente. E gozo o efeito do meu mau feitio sobre os outros. Burocratas ou não. O Marquês.